domingo, 30 de dezembro de 2007

Ano Novo

Crônica
Ano Novo
Achylle Alexio Rubin / achyllerubin@yahoo.com.br
Blog: achyllerubin.blogspot.com

Vamos entrando no ano 2008. Estive me perguntando qual poderia ser a melhor mensagem para tal oportunidade. Não achei outra melhor do que desejar aos leitores de A Razão uma grande dose de verdadeira esperança.
A esperança que a todos desejo nada tem a ver com o sentido negativo que por vezes lhe damos quando dizemos fulano vive só de esperança, para significar que vive de ilusões. Muito pelo contrário. A verdadeira esperança, em lugar de significar incerteza, significa certeza do bem que nos aguarda.
Donde poderá vir essa certeza? Ela brota de uma promessa feita por alguém digno de fé, ao qual damos crédito incondicional. A esperança então é objeto da promessa de alguém que tem autoridade para tanto. Se o pai promete alguma coisa ao filho, este não alimenta dúvida alguma de que o pai cumprirá o prometido. Portanto, a esperança participa da fé. Trata-se de crer na pessoa que nos fala prometendo-nos algum bem.
Há muitos anos um menino de seus onze anos de idade veio a mim fazendo-me algumas perguntas. Na medida em que eu lhe ia respondendo, ele repetia: Se o senhor diz, é porque é! Com essa fé, se eu lhe prometesse algum bem futuro, estou certo que ele não duvidaria do cumprimento de minha promessa.
A esperança funda-se pois na autoridade de quem promete o bem. O exemplo que dei refere-se à esperança humana, fundada na autoridade humana. Quanto maior e mais sólida a autoridade, tanto maior e mais sólida a esperança.
Dia 30 de novembro último, o Papa Bento XVI publicou uma Encíclica sobre a esperança, com o título latim Spe Salvi (salvos na esperança). Trata-se de uma longa carta com cerca de oitenta páginas que o Papa enviou aos católicos e ao mundo. Nesse documento ele contempla o triste fato de um mundo sem esperança.
Duas razões aduziu o Papa, justificando essa afirmação. A primeira diz respeito a uma constatação histórico-filosófica. Desde o século XVII, iniciando com o filósofo Francis Bacon, morto em 1626, e passando por Descartes e Kant, a esperança começou a buscar fundamento nas ciências exatas, terminando na fé no fabuloso progresso da tecnologia. A tecnologia é uma promessa falaciosa que promete resolver todos os problemas humanos, até mesmo o prolongamento indefinido da vida. Assistimos no Natal e primeiro de ano à corrida louca às compras, ao consumo desenfreado de mil produtos, por vezes ilusórios, oferecidos pela tecnologia. A esperança se esgota nesse burburinho.
A segunda razão porque o mundo está sem esperança resulta do abandono de Deus e, em conseqüência, da falta da resposta definitiva ao sentido da vida.
Qual o sentido de nossa existência? Somos seres destinados a acabar com a morte? Entretanto, habita em nós um desejo insaciável de uma felicidade diradoura, de um amor sem fim. A que serve esse desejo, essa paixão? Jean Paul Sartre, ateu confesso, morto em 1980, ao negar Deus, autor da promessa da realização dessa paixão, concluiu que “o homem é uma paixão inútil”. Esse é o mundo sem esperança: o homem é um ser inútil.Dia 1º de janeiro é o dia em que fazemos muitas promessas de felicidade, vida plena, saúde e prosperidade. Oxalá não esqueçamos a promessa d’Aquele que prometeu a felicidade sem fim, o amor que não acaba, fazendo que a paixão insaciável pelo bem deixe de ser inútil e que nós mesmos tenhamos um termo feliz, um sentido para além da morte.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Buscai primeiro o Reino de Deus

Há muito venho meditando sobre a afirmação de Bento XVI em sua Encíclica Deus charitas. Escreve aí sobre "a inseparável relação entre o amor a Deus e o amor ao próximo" (nº 16).
Ouso colocar aqui como convite à reflexão uma visão que parece pouco considerada nos tempos atuais. Todos estamos já de acordo em dizer que não são, digamos, dois componentes que se excluem ou que andam paralelos, como, aliás, já se tem afirmado. Na prática pastoral amor a Deus e amor ao próximo poderiam ser traduzidos por este outro binômio: ação pastoral e ação social.
Nos últimos tempos a vida cristã esteve muito dividida entre dois grupos nitidamente distintos. Os que buscavam aprofundar a experiência de Deus, a vida batismal, e os que se consagravam à missão social da Igreja. Estes últimos acusavam os primeiros de "intimismo", coisa que o próprio Papa Bento XVI mensionou em seu Discurso inaugural da V Conferencia dos Bispos da América Latina e do Caribe. Representantes dessas duas posturas aparecem de um lado as Comunidades Eclesiais de Base e, de outro, a Renovação Carismática Católica.
No meu entender, há um grande esforço no seio da Igreja por relacionar essas duas posturas com uma "inseparável relação". A questão que me faço, porém, visa aclarar como acontece tal relação.
O capítulo oitavo do Documento de Aparecida sobre "Reino de Deus e promoção da dignidade humana", espicaça minha curiosidade por encontrar e propor à reflexão uma resposta sobre o modo como o amor a Deus e o amor ao próximo se relacionam. Sinto que tal relação é análoga à relação entre a Doutrina Social da Igreja e a vida batismal do cristão.
Vou arriscar uma resposta, hoje, não comum. Na chamada filosofia clássica que eu identifico com a de Santo Tomás de Aquino há parâmetros racionais que, na minha opinião, ajudam enormemente a compreender essa relação. Deveremos partir de um ponto que podia ser o seguinte: Todo ser criado é composto de um componente "ativo", determinante, e outro componente "passivo", determinado. Dou um exemplo: o que determina que a matéria se faça planta? Essa matéria poderia ser qualquer outra coisa: animal ou elemento químico. No caso da planta a matéria é determinada pelo componente vegetal determinante. Este representa para a matéria um "poder" capaz de selecionar da terra e da luz os elementos de que precisa para, com uma "engenharia" admirável, organizá-los de sorte a se fazer crescer, dar flores e frutos. Ninguém faz isso por ela.
Vamos agora ao caso. Pelo batismo nós recebemos um componente, "participação da natureza divina" (2Pd, 1,4). Tal componente está vocacinado a atuar em nós à semelhança do componente vegetal para a matéria. Pois bém, assim como o componente vegetal dá àquela matéria a capacidade de crescer e produzir, assim também o componente divino do batismo produz frutos de amor ao próximo, todos os elementos de promoção humana, de justiça social, conforme a passagem de Mateus, 6, 19-24 e de Lucas 12, 22-31. Ambos os evangelistas concluem: "Buscai em primeiro lugar o Reno de Deus e sua justiça que todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo".
Concluo. "Todas estas coisas"... poderíamos dizer que são a ética, a ação social, a opção pelos pobres, a fome e a miséria, etc. Essas coisas, porém, deveriam fluir ao natural do crescimento na vida batismal, à semelhança do vigor da matéria vegetal.
Assim que, lanço como convite à reflexão, a Doutrina Social da Igreja representa um auxílio lateral que a Igreja oferece ao Estado; auxilio esse que é tirado da intensidade da vida cristã e por ela somente será realizado. Pode-se dizer que todos os santos foram dedicados de forma exímia aos pobres, aos doentes, enfim, aos necessitados, sem nunca terem feito opção pelos pobres. O atendimento aos necessitados brotava espontâneo da compaixão que fluia da vida batismal e não do compromisso. É outro tipo de compaixão.
Tenho escrito que o Império Romano, não ruiu porque os cristãos se lançaram a reformar as estruturas. Ruiu porque, quando o Império, por assim dizer, se deu conta, a mãe do Imperador era nada menos que Santa Helena. O Império foi permeabilizado pela novidade de vida dos cristãos, pela novidade do amor fraterno: "vede como se amam!"
Portanto, concluo repetindo: "Buscai primeiro...".
Considero esta reflexão de suma importância para nossa Igreja. Gostaria de dialogá-la com outros.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Papai Noel versus Natal

Papai Noel versus Natal
Achylle Alexio Rubin / achyllerubin@yahoo.com.br
Blog: achyllerubin.blogspot.com
Muitos lamentam que o Papai Noel faça ir para os ares o verdadeiro sentido do Natal, conhecido por toda pessoa medianamente culta. Vou tentar, entretanto, abrandar essa justa preocupação, apresentando duas considerações.
Em primeiro lugar, é verdade que o que aparece ostensivamente na mídia, na propaganda comercial, nos cartazes de ruas e praças, inclusive no seio das famílias, é o Papai Noel. Dá a impressão de que o sentido máximo do Natal não existe mais.
Entretanto, também me parece ser verdadeiro que, no silêncio das igrejas, dos encontros das comunidades cristãs, do aconchego das famílias, da novena de Natal, verifica-se outra realidade bem mais profunda, bem mais real. Considero que grande parte das pessoas está voltada para o Natal. Vale-se do Papai Noel apenas como expediente de propaganda, ou como alimento da imaginação infantil, mas sempre como coisa absolutamente secundária. Os mitos também influem, por exemplo, no relacionamento familiar. Recordo de pequeno que quando se nos soltava um dente de leite, o guardávamos cuidadosamente numa fresta da casa para gozarmos de manhã da sensação de encontrarmos em seu lugar uma moeda.
A segunda consideração que o Natal me sugere gira em torno do que acabo de afirmar. Os que não deixam a figura do Papai Noel empanar o Natal sabem que, quando se trata do próprio sentido de nossa existência, não podem prevalecer ilusões desse tipo. Explico-me com a máxima clareza possível.
O Papai Noel revela no íntimo do ser humano um desejo de alcançar plenitude. Somos seres insaciáveis. É como uma paixão. Não conseguimos nunca estar satisfeitos com o que temos. Queremos ter sempre mais. Revela-o, sobretudo nesta época, a ânsia com que nos lançamos às compras, à troca de carro por um modelo novo, ou à troca do computador, ou do celular...
Um antigo filósofo, talvez Diógenes, reagindo contra essa “loucura”, olhava para os mercados e exclamava: “Senhor meu Deus, eu vos agradeço porque nada disso eu preciso!”.
Um filósofo contemporâneo, Jean Paul Sartre, inteligentemente reconheceu que nós temos essa paixão pelo infinito dentro de nós, mas, sendo ele ateu, definiu o homem como “uma paixão inútil”. Assim, para ele, nada tem finalização. E não tendo finalização tomba-se no puro sem-sentido, no absurdo de todo existir. O que revela tal fato tão bem caracterizado por esse filósofo?
Revela que, ou somos de fato um absurdo, ou então somos um vazio de Deus que anseia avidamente ser preenchido. Toda vez, porém, que não temos o infinito, o absoluto a encher esse vazio, nós apelamos para sucedâneos. Tentamos, ilusoriamente, encher o vazio de Deus com aquilo que já o grande Aristóteles dizia em sua Ética a Nicômaco: o ignorante, escreveu ele, coloca sua felicidade nos prazeres, nas riquezas e nas honras; o sábio, porém, a coloca no Sumo Bem. Hoje se costuma caracterizar tal ignorância com três verbos: prazer, ter e poder.
O vazio de Deus em nós é, na verdade insuportável. Ou se o preenche com o próprio Deus, ou tentamos preenchê-lo com nossas ilusões. Não seria tão trágico se não estivesse em jogo o próprio sentido de nossa existência. Sem aquele único que poderá encher esse vazio de sentido, cairemos no pessimismo absoluto, conforme a conclusão do filósofo citado: Nada tem sentido, nossa própria existência se esvai no absurdo.
A conclusão a que estou chegando é que as corridas para as compras, as celebrações em torno do Papai Noel, revelam um elemento positivo: o vazio de Deus uivando em nosso interior.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Outra vez

Outra vez qualidade de ensino

Dois fatos me fazem voltar à consideração sobre a qualidade do ensino: o que apareceu em muitos noticiários sobre a memória de um gorila e o exame internacional tomado dos secundaristas pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico. Entre 57 nações testadas, o Brasil alcançou o 53º lugar em matemática, o 52º lugar em ciências e o 48º lugar em leitura. Será motivo de consolo não termos ficado na ponta da rabeira?
Os comentários em torno deste último fato aparecem em muitos órgãos da mídia. Mas o que me chama atenção é que as sugestões de reforma do ensino giram prioritariamente em torno dos aspectos quantitativos do ensino. Reclama-se do baixo salário para os professores, aliás, com muita razão, da falta de salas de aula para um número sempre crescente de alunos, de escassez de meios técnicos auxiliares, etc.
Considero que se prestássemos mais atenção para a qualidade do ensino alcançaríamos melhores resultados. Refiro-me ao caso do gorila, por ser paradigmático. O gorila japonês, diante de uma tela do computador, onde estavam escritos os números de 1 a 10, todos espalhados em desordem, conseguia apontar um após outro em perfeita ordem. Depois, apagados os números e substituídos por manchas brancas, o gorila novamente apontava em perfeita ordem todos os números. O mesmo exercício jovens universitários não conseguiam acertar.
Esse fato, recordou-me minha utopia de cinqüenta anos atrás. No meu longo tirocínio de professor, acreditei que um ensino de qualidade deveria priorizar a inteligência do jovem e não a memória. Por isso, comecei minha primeira aula de filosofia dizendo que deveríamos transferir o pólo da “matéria” a ser ensinada para o pólo da compreensão da mesma.
Para o efeito da compreensão acreditei que o mais importante seria o exercício da mente e não a guarda da “matéria”, onde se privilegiava a quantidade a ser transmitida. Nossa mente não desenvolve pela simples quantidade da “matéria”, mas pelo exercício, ainda que seja com um mínimo de “matéria”. Dizia que um bom craque de futebol não necessita jogar em todos os campos do mundo. Basta-lhe um só para se tornar um verdadeiro craque. O mesmo se diga de um bom violinista.
No meu contato com universitários aqui em Cascavel sou confirmado. Asseguram-me que não conseguem entender a “matéria”. Com isso apelam para a memória, coisa muito mais “prática”, por ser mais rápida e mais fácil, em função de vencer nos exames.
Dois meses atrás estive dando uma palestra sobre o ensino da filosofia, na cidade de Toledo, para alunos e professores da Universidade do Estado do Paraná. A queixa de uma professora foi muito sintomática. Disse que, com a programação oficial, não há espaço para cuidar do desenvolvimento da inteligência, é preciso correr...
Conclusão, poder-se-ia propor debates sobre o que significa um ensino de qualidade, pois, não creio que o gorila seja modelo adequado para a aprendizagem.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Ideologia

Fim das ideologias?
Tem-se falado do fim das ideologias. Entretanto, quer-me parecer que elas não acabarão nunca. Por vários motivos que desembocam no mesmo estuário. Basta recordarmos as várias características que toda ideologia representa. Uma das mais fundamentais consiste em que a ideologia se firma sobre uma parte de verdade como se fosse toda a verdade. Portanto ela diz respeito à verdade. Acontece que ninguém, nenhuma criatura pode viver sem encontrar firmeza na sua vida, sem encontrar a-firmação. Ou busca incansavelmente alcançar a verdade plena, única capaz de nos firmar, ou tenta satisfazer-se com meias verdades. Quem se contentar com meias verdades, se tornará um ideólogo. Dito com outras palavras. Nós somos seres insaciáveis. Em definitivo não nos contentamos com meias verdades. Aspiramos ao absoluto. Somos essencialmente dependentes. Ou dependemos das meias verdades e da verdade plena. Mas a aspiração ao absoluto nos faz todos condidatos ao radicalismo, ao totalitarismo. Com uma diferença, porém. Há os que radicalizam sobre meias verdades e há os que radicalizam com a posse ou, ao menos, com a busca da plenitude da verdade. Entretanto, radicalizar sobre verdades parciais como se fossem totais, significa atropelar os outros com atitudes ou sistemas de dominação, de subjugação.
A verdade total é a única que não subjuga porque ela é respeitosa.
Há duas ciências que nos levam a ela, a filosofia e a teologia. A primeira nos conduz com muita dificuldade para a verdade. Porva-o a multidão de propostas destinadas ao fracasso. Ela pode nos conduzir à verdade plena se a nossa razão for convenientemente educada, coisa, porém, muito difícil.
Entretanto, não estamos diante de uma dificuldade invencível. Há um caminho, o da ciência da revelação de Deus. Digo ciência no sentido forte do termo, de um conhecimento sistemático, metódico, ordenado, como também no sentido de simples conhecimento dessa revelação que encontramos nas Sagradas Escrituras. Um conhecimento que brote de uma relação de intimidade pessoal com Deus ou que tenha a autenticação da comunidade de fiéis através de seus legítimos representantes, por Deus mesmo constituídos. Aqui não há atropelo, ou dependência servil, porque o verdadeiro Absoluto, ao qual dependemos como Senhor nosso, é também aquele que respeita e promove nossa identidade e nossa liberdade.
Encontramos nas Sagradas Escrituras, afirmações contundentes sobre isso. Aquele que disse "a verdade sou eu", acrescenta: "... se permanecerdes na minha palavra... conhecereis a verdade e a verdade vos libertará..."; mas, "todo homem que se entrega ao pecado, é seu escravo" (Jo 8, 31s).
A ideologia é pecado, é ídolo, porque em lugar de se adorar A VERDADE, adora-se meia verdade, absolutizando-se o que é puramente relativo. Adora-se e se absolutiza uma parte da verdade com átitudes de dominação. Esse o sentido da frase de Bento XVI na antevéspera de sua eleição a Papa. Falou ele da "ditadora do relativismo".
Igualmente, ninguém, nenhuma criatura poderá ficar sem um Senhor. Ou escolhe o verdadeiro e Absoluto Senhor do céu e da terra, ou escolhe um senhor relativo e se submete indevidamente a ele. É o caso da ideologia...

Espiritualidade

Sensacionalismo
Em aula de espiritualidade nesta manhã surgiu a questão se antes do Concílio Vaticano II a vivência cristã seria menos fervorosa do que hoje. Meu testemunho foi de que me parecia que, ao contrário, nós tivemos uma infância impreganada de fortes vivências de vida cristã. Revelava-se tal fenômeno em duas direções.
Em primeiro lugar, nós vibravamos com as narrações ou leituras da história dos mártires dos primeiros séculos do cristianismo, como São Tarcísio, São Lourenzo, Santa Inês, Santa Cecília, etc. Vibrávamos com a vida de santos jovens, como São Luis Gonzaga. Todos os anos, 21 de junho, dia de São Luis, era celebrado com grande entusiasmo, grande festejo. Entravam nesse rol São João Bergman, Santo Estanislau Koscka, São Domingos Sávio.
Em segundo lugar, nós vibrávamos com a vida dos missionários que partiam para terras de missões. Tinhamos grandes desejos de partir para essas terras. Cantávamos, por exemplo: "... as áfricas terras anelo ver e em seus sertões morrer!". Tais cantos expressavam sentimentos verdadeiros.
Qual seria a razão por que hoje não se tem mais tais sentimentos, malgrado todas as insistências por uma Igreja essencialmente missionária? Pareceu-me que um dos principais motivos consiste em que estamos viciados em sensacionalismos baratos. Vejam só. A televisão não sabe mais o que inventar para criar sensação. Por exemplo, não sabe mais o que mostrar ainda do corpo da mulher para criar sensação e chamar atenção sobre produtos de consumo. O que pensariam os homens do tempo da vinda, há dois séculos, da familia real ao Brasil, se vissem os sensacinalismos de hoje? Um grande historiador dessa vinda da família real descreveu que a maior sensação dos homens da época era poder ver o calcanhar da rainha ao descer da carruagem.
Portanto, hoje, as sensações verdadeiramente grandes não conseguem mais nos impressionar, pois estamos viciados, dependentes de sensações baratas, de segunda, ou terceira ordem.
Vale refletir sobre isso?

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Jesus de Nazaré de Bento XVI

Jesus de Nazaré de Bento XVI

Quem não ouviu falar do livro, escrito pelo Papa Bento XVI, com o título Jesus de Nazaré? Dele já foram tirados milhares, digo, milhões de exemplares, em muitas línguas. Vale à pena favorecer aos leitores alguma notícia desse preciosíssimo livro. Estou com a edição Planeta do Brasil, de maio de 2007, tradução de José Jacinto de Farias, SCJ.
Antes de tudo, entendi que, se queremos acompanhar bem as meditações que o Papa faz, no esforço de aclarar o sentido da vida e da pregação de Jesus, ajuda muito partir de um princípio metodológico por ele constantemente usado.
Tal princípio consiste nisto: De um lado, devemos ver Jesus como o ponto de unidade de toda a Bíblia e, sobretudo, do Novo Testamento. Sua pessoa centraliza todas as palavras e acontecimentos narrados na Bíblia. De outro lado, Jesus só será entendido se tudo o que ele falou e fez for referido à unidade de seu “mistério”. Como, pois, se entende essa centralidade?
Bento XVI, desde a introdução, chama atenção para o Deuteronômio que termina com uma confissão ‘melancólica’: “Não se levantou mais em Israel profeta comparável a Moisés, com quem o Senhor conversava face a face” (Dt 34,10). Essa afirmação, tanto representa manifestação de desânimo, como também e, mais que tudo, de esperança e promessa da vinda daquele que, não só iria “conversar com Deus face a face”, mas inclusive seria a própria face de Deus. Igual ao Pai, “ele nos mostra o rosto de Deus, e assim nos mostra o caminho que devemos seguir...; caminho para o autêntico ‘êxodo’...” (p.23). Eis o novo e incomparavelmente mais sublime que Moisés, que “caminha à nossa frente” (Ex 32,1) para um novo e bem diverso êxodo. Quem é ele e em que consiste esse novo êxodo, manifestado em seu agir?
Primeiro, quem é ele? O Papa cita um livro escrito por um autor judeu, com o título Um Rabino fala com Jesus. Há nesse livro um diálogo sobre o que Jesus trouxe de novo em relação ao Antigo Testamento e que caracteriza bem a postura de um legítimo judeu: “... – Era isto que Jesus, o Mestre, tinha para dizer? – Não, propriamente... – O que foi que ele omitiu? – Nada! – O que foi que ele acrescentou? – A si mesmo!”.
Bento XVI explica: “... esta é a razão central por que o crente judeu não quer seguir Jesus”. É por causa da “centralidade de Jesus... que a tudo dá uma nova direção” (p.103), sobretudo ao Antigo Testamento.
Noutras palavras, Jesus não é qualquer profeta, é diferente, muito mais do que profeta. O profeta fala em nome de Deus. Jesus fala em nome próprio. Por isso, é verdade que Jesus acrescentou ao Antigo Testamento “a si mesmo”. Ele não diz “oráculo de Deus”, mas sim: “Eu vos digo...”. Pois, “ele ensina não como fazem os Rabinos, mas como alguém que tem ‘autoridade’ (Mt 7,28; Mc 1,22; Lc 4,32). O povo, diz o Evangelho, ficava não só admirado, mas “espantado” (p.101), porque Jesus se dizia Deus e falava com a autoridade de Deus.
A mãe de Santa Edith Stein, judia convicta, na discussão com a filha convertida ao cristianismo, argumentava: “Mas ele se dizia Deus...!”. Coisa que um adepto do judaísmo não consegue aceitar. E, entretanto, é esse mesmo um dos núcleos do livro de Bento XVI: Jesus de Nazaré, o Filho de Deus, igual a Deus: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30).
Jesus tinha razão de se dizer Deus. De fato, no capítulo oitavo do Evangelho de João, ele se define exatamente como Deus se definiu a Moisés: “EU SOU” (Ex 3,14). Por exemplo, começa dizendo aos fariseus: “... não sabeis absolutamente de onde é que eu venho nem para onde vou... Vós não me conheceis nem ao meu Pai (Jo 8,14,19). Termina dizendo: “... se não crerdes que EU SOU, morrereis no vosso pecado” (Jo 8, 24).
Essa não parece uma definição. Mesmo porque Deus não pode ser definido, pois, a definição, nos ensina a Lógica, se faz “pelo gênero próximo e a diferença específica”, a espécie. Mas Deus não pertence a nenhum gênero de ser, como nós pertencemos ao gênero animal, e nem a nenhuma espécie de ser, como somos da espécie dos animais racionais. Como espécie somos muitos. Deus, porém, não são muitos, é único. Daí que sua definição a Moisés só podia ser esta: “EU SOU AQUELE QUE SOU! Ou, simplesmente sou! Não sou isto ou aquilo,entre muitos (p.291s).
Com tal identidade Jesus é, em pessoa, o próprio Reino de Deus. O Reino de Deus não é apenas um conceito genérico, referente a todas as pessoas de boa vontade, mas “em primeiro lugar, encontramos a dimensão cristológica. A partir da leitura das suas palavras, Orígenes caracterizou Jesus como a autobasiléia, isto é, como o Reino de Deus em pessoa. Jesus mesmo é o “Reino”; o reino não é uma coisa, não é um espaço de domínio como o reino do mundo. É pessoa: o Reino é ele” (p 59).
Junto com tratar da identidade de Jesus de Nazaré, Bento XVI se pergunta: como caracterizar o agir de Jesus? A resposta aparece em muitos lugares do livro: o agir de Jesus se encontra iluminado pelo mistério da Cruz. Todo o Evangelho converge para esse mistério e nele se unifica.
Por conseguinte, o que vem antes da cruz não constitui um conjunto à parte de conselhos e normas morais, mas deve ser visto na luz do mistério da Cruz. Pois, “esse tipo de explicação, que faz de Jesus um moralista, um mestre de moral... não se aproxima de modo nenhum da figura real de Jesus” (p 167).
Mostra-nos o Papa de como a pregação de Jesus e, sobretudo, as parábolas apontam para esse mistério. Lê-se: “Na cruz, as parábolas são decifradas... Assim... as parábolas falam do mistério da cruz... porque elas permitem abrigar o mistério divino de Jesus, levam à contradição (cf 1Cor 1,17s) É justamente onde elas alcançam uma máxima inteligibilidade como na parábola dos vinhateiros infiéis (Mc 12,1-12), tornam-se estações para a cruz... Jesus não é apenas o semeador... mas também é a semente, que cai na terra para morrer e assim produzir frutos” (p.171).
Quem é Jesus e qual foi seu agir, constituem, no meu entender, dois momentos centrais do livro Jesus de Nazaré de Bento XVI. Considero-os como importantes para quem quer ter uma primeira notícia do valor dessa obra. Porém, mais vale lê-la e, melhor ainda, estudá-la...
Achylle Aléxio Rubin / achyllerubin@yahoo.com.br

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Documento de Aparecida, comentário 2

Documento de Aparecida, comentário 2

Vimos no primeiro comentário por mim feito que o Documento de Aparecida começa com um princípio metodológico excelente: evidenciar na Igreja um “núcleo unificador”, que nos faça “perceber a unidade de todos os fragmentos dispersos” (36); que “dê unidade a tudo o que existe e nos sucede” (37), a fim de “preencher o vazio produzido em nossa consciência pela falta de um sentido unitário da vida”, pois, finalmente, “nossa maior ameaça é o medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja, no qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas na verdade a fé vai se desgastando e degenerando em mesquinhez” (Ratzinger, J. nº 12). Esse pragmatismo nos distrai com “fragmentos dispersos” da vida cristã.
Tal constatação chama, ao mesmo tempo, por um anelo que vem sendo de longe expresso dentro da Igreja. Na Exortação Apostólica de 1975, Evangelii Nuntiandi, Paulo VI , também ele se pergunta sobre o que “constitui o eixo central da evangelização” e se inquieta sobre “três problemas candentes, que o Sínodo dos Bispos de 1974 teve constantemente diante dos olhos: – O que é que é feito, em nossos dias, daquela energia escondida da Boa Nova, suscetível de impressionar profundamente a consciência dos homens? – Até que ponto e como é que essa força evangélica está em condições de transformar verdadeiramente o homem deste nosso século? – Quais os métodos que hão de ser seguidos para proclamar o Evangelho de molde a que a sua potência possa ser eficaz?” (EN, nº 4).
Esse “núcleo mais profundo” (49), esse “eixo central” foi identificado no Documento de Aparecida como “o mistério de Deus” (35), ou o “que os cristãos chamam de sentido religioso” (nº37).
Temos aí o método e objeto do Documento. Com efeito, método e objeto se correspondem. O método é determinado pelo objeto. Se, por exemplo, temos de definir a pessoa, não podemos usar qualquer método. Não podemos usar somente o metro, ou a balança. Impõe-se outro método. Método, originalmente, quer dizer “caminho para”. Ora, se, por exemplo, o objeto é de chegarmos a determinada cidade, não podemos tomar por qualquer caminho... A posição geográfica da cidade aponta para o caminho. Assim, a natureza, as condições do objeto determinam o método.
O Documento de Aparecida, apontando como objeto “a fé e a vida em Cristo”, nos diz com acerto qual o “caminho” que não podemos tomar e qual aquele que importa tomar, para defini-llas: “O que nos define não são as circunstâncias dramáticas da vida, nem os desafios da sociedade ou as tarefas que devemos empreender, mas acima de tudo o amor recebido do Pai graças a Jesus Cristo pela unção do Espírito Santo” (14). Portanto, eis o título de um artigo de frei Clodovis Boff: “Re-partir da realidade, ou da experiência de fé?” (REB, jan. 2007).
Em vista disso, ao dedicar a primeira parte “à vida de nossos povos, hoje”, o Documento propõe como método a “contemplação de Deus” que nos faz “ver” a realidade “à luz de sua providência”, nos leva a “julgar’ segundo Jesus Cristo” e ainda nos orienta a “agir” “a partir da Igreja” (19).
E o que se revela ainda mais importante, a “meditação do mistério de Deus”, nos cria sensibilidade para percebermos as verdadeiras proporções existentes entre as “dimensões” desse mistério e as “dimensões” da história humana e das realidades urgentes da vida e da sociedade. Sem a comparação entre tais dimensões não teremos como medir nosso ver, nosso julgar e nosso agir.
A história testemunha que a “contemplação de Deus” favorece tal compreensão da iniciativa de Deus de se revelar a nós e de nos enviar seu próprio Filho que, diante dela, a importância transcendente atribuída ao “ver” os “desafios da sociedade”, simplesmente se esfuma. Que são os males de hoje frente ao desproporcional fato do “Deus conosco? Frente a tal desproporção, tais males não são maiores do que os de todos os tempos, desde Adão e Eva. Por que então dar-lhes tanta importância e perdermos tanto tempo com eles, a ponto de vivermos enrolados em pesquisas e estatísticas?
Essa reclamação não é minha. É a mesma do grande Santo Agostinho, proferida num de seus sermões: “não há, irmãos, por que murmurar... Que tormento novo sofre hoje o gênero humano que os antepassados já não tenham sofrido?... No entanto, encontras homens a murmurar contra seu tempo como se o tempo de nossos pais tivesse sido bom... Por que então pensas que os tempos antigos foram melhores que os teus? Desde aquele Adão até o Adão de hoje, trabalho e suor, espinhos e cardos... Que tempos aqueles! Só de ouvir, só de ler, não nos horrorizamos todos?...” (Liturgia das Horas, Vol. IV, p. 113).
A excessiva importância da análise social, onde se atribui a origem dos males da época, nos faz certamente correr gravíssimos riscos. O primeiro de todos parece consistir em que tais análises se fazem com método cartesiano, somando “fragmentos dispersos que resultam da informação que reunimos”, tanto da “informação econômica”, como da “informação política ou cientifica... No entanto, nenhum desses critérios parciais consegue propor-nos um significado coerente para tudo o que existe. Quando as pessoas percebem essa fragmentação e limitação, costumam sentir-se frustradas, ansiosas, angustiadas” (nº36).
Um segundo e maior risco dessas informações que, “transmitidas pelos meios, só nos distraem” (nº38), consiste, precisamente, em “supor” Jesus Cristo em nossa vida e em nossa ação missionária. Encontrei dois destacados testemunhos desse fato. O primeiro foi o do próprio fundador da Teologia da Libertação, Gustavo Gutiérrez, que,em 1996, numa conferência diante do então Cardeal Ratzinger, afirmou que “nos primeiros momentos do trabalho teológico da América Latina, demos como suposta a inspiração da fé...”. O segundo testemunho, encontra-se numa carta que representantes dos novos carismas e novas comunidades, reunidos por iniciativa da Secretaria dos Leigos do Vaticano e do CELAM, escreveram ao Papa. Nessa carta reconhecem que a fé na América Latina está minguando, de vez que Jesus Cristo fica sempre mais “suposto”.
A ênfase com que Bento XVI falou da “prioridade da fé e da vida em Cristo”, pano de fundo de todo o Documento, representa um terceiro testemunho de que não se pode mais seguir supondo Jesus Cristo na vida cristão e na evangelização. Se ele é a causa primeira, absolutamente principal, “o primeiro e maior evangelizador enviado por Deus” (nº103), então não o podemos supor, é preciso levá-lo em conta e dar-lhe a primazia que lhe corresponde em todo trabalho de evangelização. Qual será essa primazia? Brevemente espero falar desse assunto.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

O Documento de Aparecida, comentário 1

Documento de Aparecida, comentário 1

Representantes do episcopado da América Latina e do Caribe, reunidos em Aparecida, na segunda metade do mês de maio deste ano de 2007, elaboraram um documento final que pede para ser estudado e entendido. É evidente que o provérbio antigo continua valendo: quidquid recipitur per modum recipientis recipitur (tudo o que se recebe, recebe-se na medida do recipiente). Assim, todo leitor entenderá o texto de acordo com o instrumental cognitivo que tiver. Lendo os comentários de diversos teólogos, verifica-se isso mesmo com toda a exatidão.
Em primeiro lugar, desde o inicio, o Documento começa fazendo fé ao método “ver, julgar e agir”. Entretanto, a compreensão que ali se encontra não é bem “ver”, “julgar” e “agir”, como muitos deram a entender, pois o define diversamente, isto é, a partir, não da “realidade”, mas da contemplação de Deus com os olhos da fé através de sua Palavra revelada e o contato vivificador dos Sacramentos...”. O “ver” então significa a “contemplação da Palavra” para que “vejamos a realidade que nos circunda à luz de sua providência”. O “julgar” por sua vez exige que “julguemos segundo Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida...”. Finalmente, o “agir” significa “atuar a partir da Igreja...” (nº 19). O teólogo de Florianópolis, Agenor Brighenti critica essas “proposições”, chamando-as de “esquisitas” (cf Convergência, julho-agosto 2007, p.348).
Entretanto, já no capítulo primeiro da primeira parte, encontro a explicação do que significa partir do ato de “contemplar a Deus”, e não do ato de “ver a realidade”. Aqui o Documento cita o Discurso Inaugural do Papa: “Se não conhecemos a Deus em Cristo e com Cristo, toda a realidade se torna um enigma indecifrável; não há caminho e, não havendo caminho, não há vida nem verdade” (nº 22). A realidade, portanto, só se entende a partir da “contemplação de Deus”.
Em parágrafo anterior, Bento XVI havia dito que era preciso assumir “a “prioridade da fé e da vida em Cristo”. Sobre isso faz a pergunta: “poderia acaso ser uma fuga ao ‘intimismo’... um abandono da realidade urgente” sócio-politico-econômica?
Em razão desse temor, muitos, até mesmo teólogos, pretendem partir, não da contemplação de Deus, mas da realidade sócio-política, e terminam esgotando-se num emaranhado de análises e estatísticas sociais, com o que Cristo fica suposto, como foi reconhecido por muitos, até mesmo por Gustavo Gutiérrez, o fundador da Teologia da Libertação.
Essa lição do Papa, porém, foi certamente o “fio vermelho” que perpassa todo o Documento de Aparecida, como disse com muita propriedade frei Clodovis Boff.
Em consonância com esse “fio vermelho”, o Documento parte com uma solene “ação de graças” porque “Deus Pai nos abençoou com toda sorte de bênçãos na pessoa de Cristo” (cf. Ef 1,3). Pois, “o Deus da Aliança, rico em misericórdia, nos amou primeiro...” (nº 23). Novamente, prioritário é o amor de Deus, e não a “realidade”.
Ainda sobre a “realidade” o Documento fala da atitude de humildade, pois “a realidade é maior e mais complexa que as simplificações com que costumávamos vê-la em passado ainda não muito distante e que, em muitos casos, introduziram conflitos na sociedade, deixando muitas feridas que ainda não chegaram a cicatrizar” (nº 36).
As simplificações, segundo entendo, estavam na conta do método cujo ponto de partida é o “ver”. Pois, por ele, “é freqüente que alguns queiram olhar a realidade unilateralmente a partir da informação econômica,... ou da informação política ou científica...” (nº 36).
Para enfrentar essa complexidade e esse reducionismo, introduziu-se no Documento um paradigma de imenso valor com características metafísicas. Dez ou doze números, a partir do número 33, apresentam esse paradigma, contrapondo-o ao fenômeno da globalização.
Assim como a globalização quer ser uma visão e ação unitária e global em todos os níveis da existência humana, da mesma forma é preciso “perceber a unidade de todos os fragmentos dispersos que resultam da informação que reunimos” (nº 36).
Onde encontraremos esse princípio, esse paradigma de unidade de todos esses “fragmentos dispersos” do existir humano? Ele se encontra no “mistério de Deus”, pois, “sem uma clara percepção do mistério de Deus, tornou-se opaco o desígnio amoroso e paternal de uma vida digna para todos os seres humanos” (nº35).
Com efeito, “muitos estudiosos... sustentam que a realidade traz uma crise de sentido”. Não se trata, porém, dos “múltiplos sentidos parciais que cada um pode encontrar nas ações cotidianas que realiza, mas do sentido que dá unidade a tudo o que existe, e nos sucede na experiência, e que os cristãos chamam de sentido religioso... Nossa comum condição de filhos de Deus e de nossa comum dignidade perante seus olhos, não obstante as diferenças sociais, étnicas ou de qualquer outro tipo”, encontra ali no “mistério de Deus”, sua unidade e compreensão (nº 37).
Com efeito, a falta de “um sentido unitário da vida produz um vazio em nossa consciência” (nº38). Por isso, “não basta supor que a mera diversidade de pontos de vista, de opções e, finalmente, de informações... resolverá a ausência de um significado unitário para tudo o que existe” (nº42).
Finalmente, é de notar a convicção com que os bispos reunidos falam do papel unitário da devoção mariana. Diz o Documento que “o ânimo mariano de nossa religiosidade popular tem sido, sob distintos nomes, capaz de fundir as diversas histórias latino-americanas em uma história compartilhada: aquela que conduz a Cristo, Senhor da vida, em quem se realiza a mais alta dignidade de nossa vocação humana” (nº43).
Disse acima que esses números citados representam a metafísica do Documento de Aparecida e valem por todo o documento. Se tivéssemos sido educados, desde crianças, desde o primeiro ano de escola, a entender conteúdos e não a cumprir tarefas, como um bom método deve buscar, obteríamos muito melhores resultados. Mas o próprio documento poderia ser mais coerente com essa metafísica inicial.
Poderíamos ver em exemplos a importância de aprendermos a ver tudo na unidade, a fim de melhor se entender. Começo observando que um aglomerado de fragmentos não nos dá nenhuma compreensão. Por exemplo, um monte de material de construção não nos fornece nenhuma compreensão do que seja uma casa. Igualmente, as múltiplas partes de nosso corpo não nos dão de compreender o que somos. Só o componente de nossa alma dá identidade ao nosso corpo e possibilidade de se entender melhor todo o nosso ser.
Somente o exercício de se entender tudo em sua natural unidade, desde o início da aprendizagem, conseguirá botar ordem em nossa mente. E uma mente desordenada não tem serventia. Seria como um terreno onde a boa semente da compreensão não consegue germinar e crescer, mesmo, e sobretudo, na teologia e na espiritualidade.
Poderíamos ainda valer-nos de outros exemplos mais materiais. Que problemas teria aquele que, tendo centenares de textos em seu computador, não os ordenasse em pastas diversas? O mesmo se diga de uma biblioteca. Se não temos um elemento ordenador dos livros, seja pelo tamanho, ou pelo conteúdo, a biblioteca não seria funcional.
A Fides et ratio de João Paulo II insiste neste particular, afirmando, por exemplo, que “a filosofia, que tem a grande responsabilidade de formar o pensamento e a cultura..., deve recuperar vigorosamente a sua vocação originária” (nº 6). Bem mais adiante, o mesmo Papa explicita: “... o trabalho teológico pressupõe e exige... uma razão conceitual e argumentativamente educada e formada” (nº 77). Entendo que encontrar na evangelização o componente unificador, o “fio vermelho” de todos os fragmentos de vida cristão é o elemento decisivo para descobrirmos e valorizarmos o que de mais central e significativo se vê no Documento de Aparecida.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Ditadura versus democracia

Ditadura versus democracia

O feriado de 15 de novembro fez-me voltar a atenção para o significado desse dia. Tanto mais que estamos sendo bombardeados de todos os lados pela controvérsia em torno do conceito de democracia. O temor de muitos, em verdade, se refere às ameaças de novos regimes ditatoriais. Para muitos de nós as ameaças já se tornaram perigos iminentes.
Hoje, a consciência política no mundo, se inclina em torno do regime político menos imperfeito, o regime democrático. Importa então termos dele melhor conhecimento.
Entretanto, escutamos de todo lado declarações e iniciativas que revelam tudo, menos compreensão do que seja democracia.
Em primeiro lugar, importa dar-nos conta que todo regime político deveria corresponder com o significado da palavra “república”. Ela tem origem do latim e significa literalmente “coisa pública”, pois “res” em latim significa “coisa”. E a “coisa pública” se designa pelo bem comum. O regime político republicano, portanto, é aquele que está voltado para o bem comum e a ele dedicado.
A palavra “democracia”, porém, tem origem do grego e significa “governo do povo”, soberania popular, pois, a palavra “demo”, quer dizer povo e “cracia”, regime de governo. Neste regime o povo participa ativamente, pelo exercício do voto livre e soberano, na designação dos órgãos de governo. O faz elegendo representantes que melhor possam exercer a função de orientar todas as atividades sociais na consecução do bem comum.
Entretanto, não basta que o povo exerça pelo voto, ou por aclamação, o regime de governo, delegando poderes a determinadas pessoas. Faz-se necessário que o exercício de poder seja ordenado de tal sorte que o objetivo maior, o bem comum, não se frustre.
Foi para isso que se distribuiu o poder em três órgãos distintos, cada qual soberano em sua função: o legislativo, o judiciário e o executivo. Esses três órgãos devem por sua própria natureza exercer funções administrativas e, sobretudo, de controle.
Propriamente, a maior soberania deveria ser exercida pelas câmeras legislativas, cuja função também define o regime todo como “regime da lei”, sob o qual todos devem submeter-se.
Não basta, portanto, dizer que se é democrático por ter sido eleito pela maioria, ou pelos representantes das câmaras legislativas. Se observarmos as ditaduras, todas elas se constituíram ou por votação, ou por aclamação popular. Hitler foi eleito democraticamente por votação. Lênin foi aclamado pelo povo. Fidel Castro idem. Este não só pelo povo de Cuba que se livrava de um indigesto ditador, mas também apoiado por expressiva opinião mundial. No Brasil, a tomada do poder pelos militares, em 1964, foi apoiada por uma imensa maioria. Em razão disso tudo, tem-se falado em ditadura da democracia, e os países reconhecidamente ditatoriais, ousam chamar-se de “Repúblicas democráticas”. Dia 15 de novembro, talvez tenha sido, para a maioria do povo, apenas um feriadão a mais. Havia, porém, em toda a mídia, declarações que deveriam ter constituído fortes estímulos de reflexão sobre o sentido de democracia.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Vizão cristã da história


Visão cristã da história

A filosofia da história ocupou-se arduamente em buscar um sentido para o desenrolar através dos tempos dos acontecimentos humanos. Não conseguiu, porém, estabelecer um consenso entre os estudiosos. Não obstante, surpreende que o paradigma “história”, ou “histórico”, tenha alcançado, na cultura atual, tanta importância no pensamento e no agir das pessoas.
Entretanto, a história, com a vinda ao mundo de Jesus, ganha, assim como toda a criação, um sentido novo e original.
Em verdade, o “sinal de contradição” e de “queda e soerguimento para muitos” (Lc 2,34) se manifestou logo no modo novo de julgar e agir daquele “Menino”. Essa novidade, com efeito, fez com que os homens do templo, como os próprios discípulos, tivessem tanta dificuldade para entendê-lo. Os primeiros não o suportaram e terminaram crucificando-o.
Acontece que a alegoria da Caverna de Platão, entre outros significados, mostra que a sociedade não suporta alguém que venha tirá-la de suas ilusões. Platão deverá ter pensado em Sócrates. Muito mais, porém, devemos pensar em Jesus. Ele veio tirar-nos das ilusões da história, mostrando-nos que a história e a criação toda, começavam a ter, a partir dele, outro sentido.
Sobre esse sentido novo da história encontramos valiosos comentários em um autor do século II de nossa era nos deixou escrito numa carta chamada de Carta a Diogneto, publicada pela editora Vozes, em 2003.
É surpreendente como essa carta nos apresenta os cristãos como pessoas “trans-históricas”. Nos capítulos V e VI se lê que os cristãos são “paradoxais”: iguais e diferentes, ao mesmo tempo, dos demais cidadãos históricos. São iguais em tudo o que diz respeito à pátria comum: habitam nas mesmas cidades; empenham-se na política do estado; seguem os mesmos costumes, a mesma língua; vestem-se como os demais e, como os demais, também se alimentam.
Não obstante, “moram na própria pátria, mas como peregrinos”, “ cidadãos, de tudo participam, porém, tudo suportam como estrangeiros”. “Toda terra estranha é pátria para eles e toda pátria, terra estranha” (pg.23); “estão na carne, mas não vivem segundo a carne. Se a vida deles decorre na terra, a cidadania, contudo, está nos céus” (pg.24). Portanto, paradoxais, iguais e diferentes, muito diferentes.
Na introdução da edição, citada acima, Dom Fernando A. Figueiredo comenta que a carta nos fala do “Hoje Divino” da História da Salvação, para nos dizer que “o cristão se torna contemporâneo do Cristo”, ou, melhor, Cristo é sempre nosso contemporâneo (pg.14).
Em outras palavras, isso corresponde a dizer que a História da Salvação perpassa e transcende a história humana. Goza de um princípio de perenidade. Representa o “Hoje Divino”, sempre “contemporânea”, independente dos fatos histórico-sociológicos.
Portanto, a História da Salvação em Jesus Cristo é paradoxal. Ela transcende os critérios da filosofia na busca de sentido para os fatos seqüenciais da história humana. Até, por ser sempre contemporânea, nem é propriamente história, ultrapassa a história.
Em nossos dias, tal afirmação é escandalosa, acostumados que se está a submeter tudo, também como método teológico e pastoral, aos critérios dos acontecimentos históricos circunstanciais.
O novo sentido da história, depois de Cristo, não é levado suficientemente em conta. O próprio critério do “sinal dos tempos”, não é visto sob esse novo sentido. E assim, o domínio da filosofia da história e da sociologia impede que se veja a contemporaneidade da História da Salvação, a contemporaneidade de Jesus Cristo, ontem, hoje e sempre.
Qual o prejuízo para a vida cristã e para a evangelização? A vida cristã se torna apenas uma lembrança histórica, ou uma ciência sujeita à pura hermenêutica e não um acontecer agora, na vida dos cristãos. A evangelização, por sua vez, passa a esbanjar energias em bens materiais e esforços humanos, nas infindas análises e atenções voltadas para os fatos sócio-históricas das conjunturas sociais do momento e perde de vista o que é mais importante, a verdadeira natureza da vida cristã, a contemporaneidade de Cristo e da vida cristã.
Como, então, se entende essa visão paradoxal? A Carta responde no capítulo VIº com uma analogia que nos aproxima da compreensão. Compara o cristão, frente à sociedade profana, como a alma em relação ao corpo. A alma transcende o corpo, nos dois sentidos do transcender, tanto por encontrar-se em todas as partes, animando o corpo todo, quanto por ultrapassar a materialidade do corpo.
Assim são os cristãos. Em primeiro lugar, eles estão em toda parte: “Encontra-se a alma em todos os membros do corpo, e os cristãos dispersam-se por todas as cidades do mundo” (pg.24). Em segundo lugar, como a alma “habita no corpo, mas dele não provém, os cristãos residem no mundo, mas não são do mundo” (pp. 24-25).
Prosseguindo na comparação, o autor da Carta fala do modo de acontecer do ser cristão na sociedade profana e de sua função. O acontecer do ser cristão é, ainda, semelhante ao da alma: Assim como “a carne odeia a alma e a combate... também o mundo odeia os cristãos”... mas, “a alma ama a carne... assim os cristãos amam os que os detestam” (pg.25). A função, entretanto, do ser cristão é também semelhante à da alma: Como “a alma é quem faz a coesão do corpo”, assim também “são eles (os cristãos) que sustêm o cosmo”.
A comparação da alma e da carne nos recorda a parábola do fermento e da massa (Mt 13,33). Jesus disse que o Reino de Deus é o fermento que faz levedar a massa. A massa levedada, enquanto massa, é igual a todas as massas, mas enquanto levedada é outra massa bem diversa. Assim, a sociedade, enquanto sociedade, é igual a todas as demais, mas, enquanto permeada por vida cristã, será bem outra sociedade.
Ademais, o fermento permanece invisível, assim como a ação dos cristãos na sociedade. A Carta a Diogneto, seguindo sua comparação, afirma que, a alma invisível anima um corpo visível, assim como o cristão, no seu “culto a Deus, permanece invisível” ao mundo e, entretanto, o permeia, o anima e o transforma, transcendendo-o, porém, tanto por estar em toda parte, como por estar criando, sem ilusões, “outro mundo possível”, invisível para aqueles a quem lhes falta órgão para ver (Cf Lc 17,20; Mc 4,11-12; Mt 11,25).
E se a queda do Império Romano se explicasse muito melhor, graças a um processo invisível de infiltração, como acontece com os dendrólitos, árvores feitas pedras, por semelhante processo?
O Império não ruiu graças ao empenho dos cristãos em “ações sociais”, buscando a troca das estruturas injustas de então, mas ruiu por um processo de infiltração pelo fermento evangélico. De tal sorte aconteceu que, quando o Império se deu conta, a mãe do Imperador era, nada menos que Santa Helena.
O cristianismo não foi concorrente à sociedade civil. Não precisou pensar em nenhuma pressão física ou moral. A pressão foi espiritual. Melhor, foi o “brilho” da vida cristã, manifestação de seu lado ontológico, que minou a sociedade civil, atraindo os agraciados de sensibilidade espiritual que acorreram pressurosos.
Minha apreciação a respeito dos “padres midiáticos” é a seguinte: seu sucesso não se deve ao poder da comunicação, mas ao testemunho por atitudes e palavras de uma experiência do Espírito prometido por Cristo aos que o pedissem (Lc 11,13).
O Papa, em sua rápida passagem entre nós, definiu a evangelização como um processo de atração, a exemplo do que Jesus disse e fez: Quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim (Jo 12,32).
Concluindo, esse processo transformador do ser cristão representa o lado transcendente da História da Salvação, da vida cristã no mundo. O Evangelho representa novo sentido da vida e da história humanas.
Pe. Achylle Alexio Rubin
achyllerubin@yahoo.com.br


terça-feira, 13 de novembro de 2007

O Sacramento do amor

O Sacramento do Amor

No artigo de novembro tratei sobre a “loucura de Deus”, o sentido da cruz. A loucura procede de duas fontes totalmente diferentes. Uma acontece quando se dá lesão cerebral, ou perturbação da circulação cerebral. A outra fonte de loucura consiste num grande amor. Quem tem um grande amor faz loucuras. Deus fez conosco tais loucuras de amor. Convido o leitor a seguir meditando, pois. agora vou falar de outro patamar do amor, o amor humano que de forma alguma é estranho ao amor de Deus.
Leva-me a isso a multidão de problemas de relacionamento familiar que escuto diariamente. É um assunto que ocupou a atenção de filósofos e teólogos de todos os tempos. Todos buscaram uma solução para o problema humano. Uma lição, porém, podemos tirar dessa preocupação. O fato de haver inúmeras teorias a respeito pode mostrar a dificuldade de se encontrar uma resposta adequada.
Platão, por exemplo, em seu livro, As leis, fala da guerra que acontece entre os estados, entre as cidades, entre as famílias, entre uma pessoa e outra e, finalmente, no íntimo de cada qual. Cada qual, por respeito a si mesmo, “é como um inimigo diante de um inimigo”. E conclui o filósofo: “... vencer a si mesmo é a primeira e a mais bela de todas as vitórias, ceder a si mesmo é a pior e mais vergonhosa de todas as coisas. Isto que acabo de dizer, significa afirmar que há guerra em cada um de nós contra si mesmo”.
Qual então o inimigo intimo que devemos combater? Platão responde: “os elogios fáceis, os prazeres, o apego a este mundo e a transgressão das leis, etc.”.
Quem sabia antes de todos os filósofos que as dificuldades de viver o amor eram grandes, foi o próprio Deus. E o maravilhoso é que ele tomou a iniciativa de nos vir em socorro por puro e grande amor. Ao nos enviar seu eterno Filho, Jesus Cristo, foi como se tivesse, sendo infinito, esgotado todos os seus recursos para nos socorrer.
Antes de tudo nos faz, pelo batismo, filhos seus. Depois, em cada etapa de nossa vida, enriqueceu sua Igreja de recursos renovados. Para a importante etapa que realiza o mandamento “crescei e multiplicai-vos” (Gen 1,28), instituiu o matrimônio, o sacramento do amor esponsal.
Tenho intenção de abordar esse assunto nos próximos meses, precisamente levado por tantas confidências que me são diariamente feitas em busca de alguma resposta a inúmeros problemas de relacionamento familiar. Sentir-me-ei feliz se conseguir abrir uma fresta de luz nessa área tão árdua.
Em primeiro lugar, a título quase de introdução, vou falar da índole desse assunto, muito relacionada com a filosofia. Isto é, esse não é um tema que pode ser visto e mostrado. Ele ultrapassa o sensível, não pode ser imediatamente tocado por nossos sentidos. É como falar da bondade, da justiça, do próprio amor. Tudo isso é real, mas não pode ser mostrado para ver e apalpar. E contudo, são coisas reais. Conhecemo-las pelos seus efeitos, pelos sentimentos que fazem nascer em nós e pelo comportamento diferente que condicionam.
Quando, por exemplo, falamos das realidades que acontecem depois de nossa existência terrena, não temos maneira de mostrá-las para serem vistas, ou tocadas. Elas são transcendentes, quer dizer, estão além das coisas materiais sensíveis. Quando o Papa João Paulo II critica as filosofias modernas que se fecham para a transcendência, ele quer dizer que negam as realidades que estão além do mundo material.
Sabemos de sua existência porque Deus no-lo disse. Está escrito na Bíblia. Não é palavra de homem, é palavra de Deus...
Nos sacramentos da Igreja trata-se precisamente dessas realidades que nos foram ditas, testemunhadas por Jesus Cristo. Por exemplo, no Evangelho, Jesus, “interrogado pelos fariseus sobre quando chegaria o Reino de Deus, respondeu-lhes: ‘A vinda do Reino de Deus não é observável. Não se pode dizer: ‘Ei-lo aqui! Ei-lo ali!’, pois, eis que o Reino de Deus está no meio de vós’” (Lc 17,20-21).
Jesus quis dizer que o Reino de Deus era ele próprio, enquanto Deus. Estava no meio deles, mas eles não o podiam ver. O que os fariseus observavam com seus olhos era só um homem e não Deus. Se os fariseus vissem Deus, não teriam feito a pergunta, seria uma realidade evidente e a pergunta seria supérflua.
Da mesma forma, como não se vê Deus em Jesus Cristo, não se vê o que o batismo produz em nós, o “renascer da água e do Espírito” (Jo 3,5). Jesus repreende Nicodemos: “És doutor em Israel e ignoras estas coisas!” (Id v.10). Muito menos se vê Jesus na hóstia consagrada. É a palavra de Jesus, “palavra de Deus”, que nos assegura tudo isso.
Até que o efeito do batismo se pode ver. Todos deveriam perceber a diferença existente entre uma pessoa que vive intensamente seu batismo e outra que não o vive. Por exemplo, as multidões que iam se encontrar com o Pe. Pio, por que motivo iam vê-lo pessoas de todas as partes do mundo? Não seria porque nele apareciam muito fortes os efeitos do batismo? Outro exemplo foi o de São João Maria Vianey. O governo francês, cheio de preconceitos contra a religião, contudo, teve de construir uma estrada de ferro até a vilazinha de Ars, para transportar tantos peregrinos que iam ver e se confessar com o santo “cura d’Ars”. Aliás, em todas as comunidades cristãs há pessoas que se distinguem por sua vida batismal. Basta ter olhos para ver.
Jesus fala muitas vezes dos “sinais dos tempos”. Não porém da aparência dos sinais, senão da dimensão do espírito que eles carregam. Essa dimensão não todos a “vêem”. Os escribas e fariseus recusavam-se a “ver” o sentido dos “sinais”. Por isso, pediam sinais e nada viam na quantidade que estavam acontecendo ao seu redor. Jesus os interpela: “Hipócritas, sabeis distinguir o aspecto do céu e não podeis discernir os sinais dos tempos? Essa raça perversa e adúltera pede um milagre! Mas, não lhe será dado outro sinal senão o de Jonas!” (Mt 16,4).
Os hipócritas de todos os tempos continuam não vendo o sentido dos “sinais”. Há, porém, muitos que vêem. Falo a esses, ao falar do Sacramento do amor, do matrimônio cristão.
Todo sacramento, em verdade acontece com um sinal material, carregado de uma realidade que não se vê, não se apalpa e somente se vê através de seus frutos. Quantidade de casais se dão conta disso. Ao dar-se conta, por graça de Deus, louvam e agradecem sem fim. Seguirei falando do sinal visível do matrimônio cristão e de seu conteúdo invisível. Até o próximo mês.

Pe. Achylle A. Rubin / achyllerubin@yahoo.com.br

O Social

Pastilha 77
O Social
Estou fazendo um teste para inaugurar meu novo Blog. Desejo tudo de bom aos que me lerem, junto com uma carga de bênçãos!
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Prometi na “pastilha” anterior tratar o assunto do social. Faço-o porque se trata de um tema de grande relevância para os tempos atuais. Tanto o socialismo, como o neoliberalismo não possuem uma compreensão adequada do social. Ao contrário. Eles induzem o pensamento a criar uma atitude maniqueísta. Assim o mundo se acha dividido. O mal de uns é bem para outros, e vice-versa. De um lado, impera o coletivismo, do outro o individualismo. E como os extremos se tocam, ambos conduzem, tanto para o individualismo, quanto para o coletivismo.
Na verdade trata-se de encontrar uma compreensão que valorize a sociedade, como o indivíduo. Há pouco tenho lido uma afirmação verdadeira de Leonardo Boff. Escreveu ele: o capitalismo nega a sociedade e o socialismo nega o indivíduo. Como então ver a harmonia entre esses dois componentes humanos?
Eis um dos primeiros assuntos que, a partir de 1958, estive tratando. Na semana após a Páscoa de 1960 dei um cursinho de três dias sobre a nova orientação pedagógica nos seminários. O tema principal versava sobre a relação indivíduo e comunidade. Como fugir tanto do coletivismo, quanto do individualismo?
Em filosofia, depende tudo do ponto de partida. Isto é, qual a natureza do social? Que tipo de ser é o social? Com efeito, se queremos entender um pouco do ser social precisamos entender qual a categoria de ser a que ele pertence. Do contrário estaremos sempre errando com nossos julgamentos.
Importa então, em primeiro lugar, dar-nos conta de que o ser social não é um ser físico. Por isso, não são as chamadas estruturas sociais, políticas, econômicas, educacionais, sanitárias, etc, que constituem, em primeira instância, o social. Essas são meros efeitos do social.
O social radica num nível bem mais profundo. Para entendê-lo se faz mister observar que ele diz respeito à intenção e à vontade livre das pessoas. E quando alguma ação parte da vontade livre das pessoas em busca de um fim – todos agimos por um fim – se diz que é uma ação moral, um ser moral.
Que seria então tal ser moral? Precisamente, o social acontece quando as intenções de vários indivíduos se unem por uma decisão da vontade livre para buscar juntos um objetivo. O que seria esse objetivo?
O objetivo humano é sempre o Bem. A pessoa está sempre essencialmente voltada para o bem. Tem-se definido o bem como aquilo que todos os seres apetecem, buscam e com ele se realizam, se tornam felizes. Assim as plantas, os animais e os homens buscam sempre ser e ser mais.
O social é constituído por um bem que muitas pessoas apetecem e buscam juntas por decisão livre de sua vontade. Assim o ser moral social é a comunhão de intenções e vontades que buscam em comum um bem. A causa do social é a união solidária de muitas vontades em torno de um bem que, por ser buscado solidariamente se chama de Bem Comum. Assim se constitui o social, feito de um ser que não é físico, mas moral, porque se trata do reino dos costumes, do comportamento. "Mores", em latim, significa costumes. De "mores" vem moral. A união, a comunhão que se estabelece, evidentemente, não é física.
Por outra, os bens que não são alcançados pelos indivíduos o serão pelo grupo e o que o grupo menor não consegue, o grupo maior vem, subsidiariamente, em seu auxilio. É a chamada lei da subsidiaridade. O que causa o social, portanto, é a ação da vontade de muitos para alcançar um bem que só se alcança em comum, que exige união de muitos.
Importa distinguir bens comuns morais e, outros físicos. Bem comum moral, por exemplo, é a confiança. Dela depende tudo, é básica para a economia. Preservá-lo é vital para uma comunidade. Esse bem é interno. O saber é outro bem comum que pertence a toda a humanidade. O Bem comum externo são todos os empreendimentos auxiliares, como as estruturas de governo, do poder executivo, legislativo e judiciário, as estruturas das escolas e universidades, as estruturas sanitárias, etc.
Em razão de ser moral e não física a natureza do social, ela também reside no íntimo das pessoas. O conflito acontece quando se imagina o social como um ser físico, as chamadas estruturas. Estas não são a causa primeira das injustiças. A injustiça reside mais em baixo. Está no íntimo da pessoa que não se conforma com o Bem Comum, ou que o dilapida.
Considerado o social como ser moral, ele não cria, por sua natureza, conflitos. Criaria se fosse visto como ser físico, pois, entraria em confronto com outro ser físico, a pessoa individua. Dois seres físicos podem confrontar-se, mas um ser moral íntimo à própria pessoa não produz conflitos, pois ele é um componente da mesma pessoa. Nela o Bem comum habita e é assumido com responsabilidade. Ao nascer a pessoa o bem comum se lhe impõe ao natural, seja o bem familiar, como o bem pátrio.
Desde sempre, se tem definido o homem como “animal político”, cidadão, de vez que a relação com o Bem comum é inata, pertence à própria natureza.
Em conseqüência, a autoridade, tanto familiar como civil, tem por função promover e defender o Bem comum contra as tendências desagregadoras.
Duas conclusões. Primeira. A estratégia maior da ideologia socialista sempre foi a conquista da opinião pública através da mídia. Ela está se impondo de tal sorte que a pessoa individua vai sendo mais e mais relegada, anulada. De outro lado, a prática consumista do liberalismo alcança o mesmo objetivo, domina a pessoa através do marketing, fazendo-a escrava da propaganda e da moda. A ditadura que ameaça a América Latina e que reina em muitos países está sendo, hoje, a mistura dos dois componentes. Um exemplo é a China.
Segunda conclusão. Com a resposta que dei acima, pretendo mostrar que é possível vencer o maniqueísmo ideológico: Quem não é socialista é capitalista. Ou: Quem não é de tal partido, é do outro. A maniqueísmo é também extremista, absolutista. Usurpa o absolutismo de Deus: “Quem não está comigo, está contra mim” (Lc 11,23). Achylle A. Rubin

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Em torno da Vª Conferência de Aparecida

De todo lado se fazem comentários em torno da Vª Conferência de Aparecida. Proponho-me comentar algumas interpretações feitas sobre o Documento final da mesma Conferência.
Há várias interpretações de teólogos produzidas antes mesmo da publicação oficial, que, no meu entender, têm ares de quem está com pressa em adiantar opiniões. Considero de muita utilidade entabular um diálogo sobre o assunto, deixando de engolir simplesmente o que se publica. Por que temos nós de continuar sendo meros consumidores das opiniões dos outros? Confesso que esta foi uma de minhas maiores preocupações a respeito de nossa formação.
Limito-me a comentar as duas entrevistas sobre o referido Documento final de Aparecida, a de frei Clodovis Boff e a do Pe. João Batista Libânio. Em primeiro lugar, vou selecionar duas perguntas do entrevistador. Uma, sobre “as luzes” que o Documento projeta para a Igreja em geral, para a teologia e para a evangelização. A outra, sobre a posição teórica e prática do Documento a respeito da opção preferencial pelos pobres. Quanto à primeira pergunta considero que ambos os teólogos souberam com muita propriedade acentuar o núcleo central de todo o Documento, que vem projetar luzes sobre a evangelização.
Frei Clodovis, nos diz que “o fio vermelho que permeia todo o documento” seria a “fé viva em Cristo a partir de uma experiência de encontro”, ou, “a fé em Cristo no começo, como fundamento de tudo; a evangelização como primeiro desdobramento espontâneo dela; e, enfim, a missão social como seu necessário desdobramento ulterior”. Seria “a própria boa-nova do amor de Deus a ser experimentado, anunciado e projetado na vida”.
O mesmo núcleo é visto por Libânio, para quem o documento se propõe dois eixos: a) “afirmar a relevância da experiência cristã fundamental e fundante: o encontro pessoal com Cristo no interior da comunidade da Igreja”; ... b) “a alegria de ter-se encontrado com o Senhor”, que faz “brotar os desejos de segui-lo e de anunciar-lhe o Evangelho...” ; ... c) “articulando esses dois eixos... pensa-se, então, deslanchar ampla mobilização para uma grande Missão Continental”.
A outra pergunta do entrevistador diz respeito à opção preferencial pelos pobres. O entrevistador pergunta aos dois teólogos se o documento da Vª Conferência “confirma” essa opção e “como a põem em prática”. Ambos os teólogos respondem afirmativamente. Há uma confirmação e uma prática.
Contudo, parece divergirem quanto à sua concretização prática. Frei Clodovis afirma que “se trata de uma opção verdadeiramente evangélica, no sentido de vir banhada e mesmo encharcada da fé em Cristo... tanto em sua origem (ela nasce do encontro com o Filho de Deus, ‘que de rico se fez pobre’), quanto em seu exercício (ela vibra com os sentimentos do coração do Bom Pastor). Quanto às implicações concretas... os bispos apelam para a ‘imaginação da caridade’, a que se referiu João Paulo II”.
Pe. Libânio começa por fazer ressalvas ao Documento, pois, diz ele, “o conjunto dos bispos... não superou o trauma da libertação..., pesa estranho silencio sobre a Teologia da Libertação”. Por isso, observa criticando, que o Documento “imagina que o agir consoante com a opção pelos pobres flua da ‘fé cristológica’ e daí se faça criativo”. Pois, “as indicações (do mesmo) permanecem na proximidade afetiva e existencial com o pobre, o que já é algo, sem perguntar-se, porém, pelos movimentos sociais... que objetivariam tal opção”.
Com isso, Libânio contradiz as palavras do Papa, por ele próprio citadas: “A opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza”. A “fé cristológica” permaneceria, assim, só “na proximidade afetiva e existencial com o pobre”, ou só “vibraria com os sentimentos do coração do Bom Pastor”, na expressão de frei Clodovis, e não promoveria ação prática alguma, que só viria mediante os “movimentos sociais que objetivariam tal opção”. Para Libânio a prática social não fluiria da fé e vida em Cristo. Seria, como afirmou Dom Damasceno, “paralela” à vida em Cristo. Dualismo, portanto...
Que dizer dessas duas opiniões? Parece evidente que frei Clodovis está mais próximo de fugir ao dualismo “fé x ação social”, do que Libânio. Este acha que a opção pelos pobres não “flui” da “fé cristológica”, enquanto que Clodovis afirma que a opção pelos pobres deve ser evangélica, isto é, deve “vir banhada e mesmo encharcada da fé em Cristo”, com identidade cristã.
Frei Clodovis, como consta de uma correspondência com ele, é um teólogo que sinceramente vive inquieto por encontrar respostas aos dualismos e, com essa inquietação, ele chega mais próximo da visão evangélica. Haja vista o artigo que ele publicou na Revista Eclesiástica Brasileira de janeiro/fevereiro deste ano, com o título bem sugestivo, Re-partir da realidade ou da experiência de fé? Com isso ele antecipou a concepção central, inciso 3, do discurso do Papa, na abertura da Vª Conferência de Aparecida.
Nesse lugar o Papa fala da “prioridade da fé em Cristo e da vida em Cristo”. Em seguida responde à objeção: não seria isso “intimismo”? Não seria fugir da urgência das “realidades” sócio-politico-econômicas “para o mundo espiritual”?
Bento XVI responde com outra pergunta: “que é a realidade? Que é o real?”...Aqui está, afirma ele, “o grande erro, erro destrutivo”: limitar-se às realidades sócio-politico-econômicas. Pois, “se não conhecemos a Deus em Cristo e com Cristo, toda a realidade se converte em um enigma indecifrável”. Pergunta-se, por que?
Por duas razões. Primeiro, a realidade só se entende em relação com o Criador, de quem ela depende. Segundo, ela só se entende em relação à Revelação. Aqui vale o que escreveu São Paulo: “A criação aguarda ansiosa a libertação dos filhos de Deus...pois sabemos que toda a criação geme e sofre como que dores de parto até o presente dia” (Rom 8, 20,22). Só nessa perspectiva, depois de Cristo, se pode entender a realidade toda.
Portanto, Codovis está mais próximo de vencer o dualismo, dizendo que a ação social deve “fluir” da fé e da vida em Cristo, enquanto que Libânio põe a fé e a vida em Cristo só como “proximidade afetivo e vivencial com o pobre”, sem capacidade de se fazer “criativa”, isto é, ação prática.
Este é um primeiro comentário que senti de deixar escrito, ainda que encontre poucos interlocutores. Desejaria muito que os houvesse. Sem interlocutores o estímulo fica fraco.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Apresentação

Estou inaugurando um blog. Esta é uma coisa ainda meio misteriosa para mim. Mas dizem que comendo vem a fome...

Sou padre e já estou com 81 anos, mas Deus me conservou suficientemente lúcido para poder ajudar muita gente. Tenho 56 anos de padre e posso dizer que sou feliz, agradecendo muito a Deus por tanta proteção, apesar de ter sido tão ingrato para com ele. Atribuo minha lucidez ao exercício constante da mente. 49 anos de professor de filosofia e um pouco também de teologia, já se vê que fiz algum exercício de entender as coisas. Estou constantemente escrevendo para três orgãos de imprensa e já tenho publicado seis livros. Estou disposto a dialogar com meus virtuais leitores sobre temas de filosofia e religião. Não posso prometer respostas, quando o tempo me for escasso e, evidentemente, quando meus conhecimentos não me permitirem. Somos tão limitados. Quando pensamos saber, já não estamos mais sabendo. Saber que não se sabe é o início da sabedoria. Abraços e bênçãos para você que leu esta minha apresentação. Pe. Achylle Alexio Rubin