quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Catolicismo e meio ambiente

Catolicismo e meio ambiente

Introdução

Trata-se do tema Religiões e meio ambiente. Fui convidado a falar sobre Catolicismo e meio ambiente.
Como primeira tarefa, a título de introdução, vou começar por aclarar brevemente o próprio título desta palestra. Em primeiro lugar, sobre o catolicismo não seria necessário dizer muito. Suponho estar falando a um público razoavelmente informado a respeito. Não obstante chamo atenção para alguns aspetos.
A religião católica é uma religião cristã, por constituída de pessoas que crêem em Deus por Jesus Cristo, Filho de Deus. A fé em Jesus Cristo é amparada, por assim dizer, num tripé: a Bíblia, a comunidade de fé, e o magistério da Igreja.
O catolicismo reconhece a Bíblia como primeiro fundamento, tanto o Antigo como, sobretudo, o Novo Testamento. A Bíblia é também caracterizada como Sagrada Escritura. O catolicismo a reconhece como um livro diferente, um livro que contém a revelação por parte de Deus de suas obras e de suas intenções a respeito do homem. Esse livro é por isso chamado de “Palavra de Deus”.
É na verdade uma palavra original porque não trata apenas da palavra como símbolo de um saber intelectual, mas trata da manifestação, por assim dizer do esforço de Deus por desejar estabelecer relações de intimidade com os homens. Não é uma ciência, no sentido moderno, mas nos manifesta a intenção de pessoas que vêm ao encontro dos homens. Daí que os dois Testamentos são ainda chamados de Antiga e Nova Aliança, pois aliança diz respeito a uma relação entre pessoas.
O Apóstolo e evangelista João, no prólogo de seu Evangelho, chamou Jesus Cristo de “Verbo”, quer dizer, Palavra. Palavra de Deus indica aqui, por eminência, o próprio Jesus Cristo. Portanto, “palavra” designa a pessoa de Jesus Cristo, que veio para nos mostrar o Pai. Como toda palavra manifesta um sentido, um conceito, é a imagem da coisa em nossa mente, assim também Jesus, o Verbo, é imagem perfeita do Pai. Foi por isso que, quando um Apóstolo perguntou a Jesus: “Mostra-no o Pai”, Jesus respondeu: “Aquele que me viu, viu também o Pai” (Jo 14,9).
Sendo pessoa, a palavra representa uma linguagem original, cujo sentido é captado por outro método diferente daquele das ciências. A hermenêutica neste caso tem uma importância relativa. Necessitamos de uma outra luz para descobrirmos seu significado pleno. Chama-se de luz da fé que ilumina a mente. Não só luz mas também “calor”, pois aquece o coração. Isso é coisa própria do amor, da intimidade de pessoas. Sendo que se trata de intimidade de pessoas, a Palavra de Deus se torna um acontecimento, uma vivência.
Há incontáveis exemplos, antigos e atuais, desse acontecer na pessoa de quem tem fé. São Justino, filósofo pagão, apenas 150 anos depois de Cristo, converteu-se ao cristianismo, ao ler a Bíblia, graças ao conselho de um velhinho misterioso, que lhe falou dos profetas que “haviam anunciado somente a verdade”. Justino tomou a Bíblia e nos conta: “A minha alma, de repente ficou iluminada por um fogo como se fora a luz do meio dia. Senti-me enamorado dos profetas e das pessoas amigas de Cristo. Pensei e repensei em todas aquelas palavras e entendi: entendi que esta é a única verdadeira e útil filosofia. É assim que sou filósofo. Gostaria, aliás, que todos experimentassem o que eu sinto e que não se afastassem da doutrina do Salvador”[1].
Outro exemplo mais caseiro é o do Sr. João Luiz Pozzobon. A certa altura de suas caminhadas por muitas estradas, visitando famílias e escolas, rezando o rosário e dando catequese, não se conteve e exclamou na minha presença: “Se me encontrarem morto na beira da estrada, saibam que morri de alegria!”. A alegria provinha da presença divina em seu coração.
Exemplos como esses ilustram o segundo “pé” sobre o qual se apóia a Igreja Católica que é a vida de fé da comunidade. Quando através dos tempos toda a comunidade vive da fé em algum elemento relacionado com Deus, admite-se tal acontecimento como coisa verdadeira.
O terceiro pé sobre o qual se fundamenta o catolicismo reside no chamado “Magistério da Igreja”. Funda-se na incumbência dada por Cristo a Pedro e aos Apóstolos com Pedro, de serem os garantes da unidade da vida dos discípulos e também os testemunhas na confirmação da fé. Encontramos tal incumbência em todos os quatro Evangelhos. No de Mateus basta recordar o episódio da confissão de Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo! Jesus então lhe disse: ‘... eu te declaro: tu es Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja...eu te darei as chaves do reino dos céus, e tudo o que desligares na terra, será desligado nos céus” (Mt 16,16s; cf 18,18; 28,18).
Na última ceia, Jesus incumbe a Pedro de confirmar os demais: “... eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; e tu, por tua vez, confirma os teus irmãos” (Lc 22,32). Finalmente, por três vezes, Jesus pergunta a Pedro se o ama e por três vezes lhe diz: “apascenta os meus cordeiros” (Jo 21,15s). Apascentar é uma imagem para dizer convoca, vela, defenda... como faz o pastor.
O outro conceito que está em nosso título é “Meio Ambiente”. Aqui também não será preciso dizer muito porque dele se fala em toda parte, nas escolas e em todos os meios de comunicação. A própria palavra indica o sentido. Trata-se do lugar e dos elementos que compõem o habitat dos seres vivos e, sobretudo, dos humanos. O Aurélio o define como “lugar onde se vive, com suas características e condicionamentos geofísicos”. Compõe-se de muitos fatores: a terra, a água, o ar, a luz, a flora, a fauna, os resíduos da era tecnológica e sua influência sobre o meio ambiente. Portanto, tudo o que entra a fazer parte do “lugar onde se vive”.
Mas o conceito de meio ambiente engloba ainda, e sobretudo, o equilíbrio entre esses fatores de sorte a fazer com que esse lugar se torne adequado para a vida. Pelo meio ambiente iniciamos a consideração.

1. Deus criou o meio ambiente

Todo e qualquer tema que o catolicismo como tal tem em vista, o trata com uma ciência própria, que é a teologia. A teologia trata de todo conhecimento que Deus nos tem revelado. E, se é revelado, isto significa que, num primeiro momento, representa um conhecimento que vem de Deus a nosso respeito e a respeito do universo. Só num segundo momento torna-se um conhecimento nosso, uma ciência. Assim que nossa ciência teológica baseia-se sobre fatos e palavras reveladas. É um conhecimento que se encontra na Bíblia, na fé da comunidade cristã e no magistério da Igreja, como vimos.
O que então nos dizem essas três fontes acerca do “meio ambiente”? A primeira delas é a Sagrada Escritura.
Pois bem, desde suas primeiras páginas ela nos fala, nada menos do que do meio ambiente. Isto é, os dois primeiros capítulos tratam da criação do meio ambiente para o homem. Justamente, toda a Bíblia começa assim: “No princípio, Deus criou os céus e a terra” (Gen 1,1). Em seguida especifica. Cria a luz; separa as águas da terra para fazê-la habitável; cria os vegetais, os astros, os peixes e animais que habitam nas águas, todo tipo de animais terrestres. Diz textualmente: “Produza a terra seres vivos segundo a sua espécie...” (Gen 1,24). Terminado de criar todo esse ambiente, a Bíblia diz: “E Deus viu que isto era bom”.
Preparado o ambiente, Deus criou para habitá-lo o homem e a mulher e os criou “à sua imagem e semelhança” (Gen 1,27). E lhes entregou tudo como um dom precioso: “Eis que eu vos dou toda a erva..., todas as árvores..., todos os animais..., todas as aves..., e tudo em que haja sopro de vida...” (Gen 1,29s). Depois desse dom, terminada a obra da criação, a Bíblia completa: “Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom” (Gen 1,31).
Portanto, a Sagrada Escritura tem uma visão positiva a respeito do meio ambiente. Alguns acharam que há nessa descrição um elemento negativo, referindo-se ao versículo 28 do capítulo primeiro, em que Deus diz: “...enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais...”. Aqui não podemos deixar de levar em conta que as palavras são meros símbolos que simbolizam significados que variam conforme as diversas línguas, as culturas diversas e as diversas épocas. A palavra “dominar” hoje adquiriu significados negativos. Foi-lhe atribuído o sentido de arbítrio sobre pessoas e coisas. Entretanto ela deriva de dominus, em latim, que significa senhor e não tem necessariamente o significado negativo de patrão despótico. Ademais, logo adiante a Bíblia diz que Deus doou tudo ao homem “para ver como o homem os havia de chamar... e o homem pôs nomes a todos os animais, a todas as aves...” (Gen 2,19-20). Ora, pôr nome é um gesto de carinho e de paternidade e não de dominação, no sentido moderno. A dominação veio após.
Depois do episódio do dilúvio, Deus manifesta ainda seu apreço pela natureza, pelo meio ambiente. Estabelece uma aliança “convosco e com vossa posteridade, assim como com todos os seres vivos..., as aves, os animais domésticos, todos os animais selvagens...” (Gen 9,8s).

2. Donde veio a dominação e o desperdício da natureza?

Na época em que a Escritura Sagrada foi escrita, fazia-se a mesma pergunta angustiante que hoje nos fazemos: Se Deus disse que “tudo era muito bom”, se Deus é bom, donde veio a maldade humana, que reside em nós e tem – hoje, todos o sabemos – tanta repercussão destruidora de nós mesmos e do meio ambiente em que vivemos?
Há em nós tendências para o mal, para a destruição. Facilmente satisfazemos tais tendências em detrimento da harmonia de nosso ser, da sociedade e da natureza, na ilusão de encontrarmos realização pessoal.
A resposta da Bíblia está descrita no capítulo três do Gênesis. Com uma alegoria, esse capítulo nos descreve um acontecimento de grande e universal importância. Aí encontramos certa explicação para o problema do mal no mundo. Isto é, descreve-se a origem da maldade humana. Onde reside tal origem?
Hoje, por exemplo, os comentaristas, diante da crise financeira, estão de acordo em afirmar que a origem dela é a “ganância”. Mas, donde veio a ganância? Outros generalizam mais, falando do egoísmo que mora em nós. E o egoísmo donde veio?
Precisamos olhar para a referida alegoria para ver a origem do mal. O maligno, no símbolo da serpente, explorou exatamente nossa natureza de seres dotados de espírito que conhecem e amam e que aspiram insaciavelmente o infinito, na posse de Deus. Por criação somos um vazio, vazio de Deus.
Até Jean Paul Sartre, filósofo contemporâneo, reconheceu essa nossa realidade insaciável, esse vazio de Deus, mas como ateu contumaz, declarou que esse anseio não tem finalização, não tem sentido, já que Deus não existe. Em razão disso definiu o homem como “uma paixão inútil”.
Foi exatamente o que o tentador explorou: o anseio por preencher o vazio, propondo ao homem separar-se de Deus, pois, unido a ele estaria de olhos fechados, sem rumo, enquanto que separados dele “vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal” (Gen 3,1-5).
Desde então, como por um processo genético, o afastamento de Deus, em lugar de abrir os olhos, produziu a verdadeira cegueira. Desde então vivemos da ilusão de nossos “olhos” de enchermos o vazio de Deus com sucedâneos, como são os prazeres, as riquezas, a cobiça, o orgulho, a dominação.
O grande filósofo pagão, Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, escreve que o néscio se ilude “colocando a felicidade nos prazeres, nas riquezas e nas honras. O sábio, porém, coloca a felicidade no Sumo Bem”. Essa “ignorância” é o que desorganiza nossa natureza e também o mundo ao nosso redor.
O primeiro desequilíbrio está em nosso próprio ser e, a seguir, o transferimos ao nosso meio ambiente. Não que os prazeres, as riquezas, a ambição etc. sejam maus. O são desde que se sobreponham às outras dimensões de nosso ser. Se julgamos, com efeito, que a crise financeira atual brota da “ganância”, isto significa que se pretende ser como Deus, acima do bem e do mal, encaminhando tudo em proveito do “ego”, ainda que tenha de dilapidar a natureza.
Eis a causa do desperdício do meio ambiente: já que não enchemos o vazio de Deus com o objeto próprio, que é Deus, tentamos insaciavelmente preenchê-lo com sucedâneos, com ersatz. E nessa corrida não há limites. Somos insaciáveis porque o desejo é de infinito.

3. O resgate do meio ambiente

A Bíblia em sua divisão clássica compõe-se de duas partes, o Antigo e o Novo Testamento. Mas, para efeito do que estamos tratando, poder-se-ia dividi-la como primeira parte, os dois primeiros capítulos, os da criação e os da queda com suas conseqüências e como segunda parte todos os demais capítulos.
O meio ambiente já não será mais tranqüilo e pacífico. Deus disse a Adão: ... “maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento... Ela te produzirá espinhos e abrolhos... Comerás o teu pão com o suor do teu rosto...” (Gen 3, 17-19). Isso quer dizer que rebelado o homem, toda a natureza, ambiente se tornou adversa, não por sua causa, mas por causa do homem. Antes a natureza era jardim do Éden, depois, se tornou o “vale de lágrimas”.
A partir daí, entretanto, a natureza toda, os homens, em primeiro lugar, não foram abandonados. Deus começa a falar em uma aliança com o homem e com a natureza, sobretudo a partir do capitulo 12 do livro do Gênesis, quando escolhe Abraão e lhe diz: “Faço aliança contigo e com tua posteridade, uma aliança eterna, de geração em geração, para que eu seja o teu Deus e o Deus de tua posteridade” (Gen 17,7).
Toda a Bíblia passa a representar o esforço, por assim dizer, que Deus faz para resgatar o homem e, com o homem, a natureza, o meio ambiente. Quem melhor expressou isso, com palavras certas, foi São Paulo. Escreve ele: ... “A criação foi sujeita à vaidade – não voluntariamente, mas por vontade daquele que a sujeitou – todavia, com a esperança de ser também ela libertada do cativeiro da corrupção, para participar da gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Pois sabemos que toda a criação geme e sofre como que dores de parto até ao presente dia. Não só ela, mas também nós...” (Rom 8,19-22).
A natureza toda, portanto, assim como participou da escravidão do pecado, traduzida em depredação, também esteve destinada a participar da “liberdade dos filhos de Deus”. Essa liberdade refere-se ao fato inimaginável, impensável, surpreendente, do Filho de Deus que se faz natureza, que assume uma natureza humana, vive ligado intimamente à natureza, à terra, à água, aos montes, ao lago, às aves, aos animais, às plantas, à videira, à oliveira, aos trigais, às flores, aos lírios do campo, enfim a toda a natureza, como meio ambiente do homem.
Ao assumir a natureza humana, assume junto todo o meio ambiente, a morada por ele próprio preparada para o homem. A decadência do homem, como vimos, significou a decadência de seu meio ambiente. Pois, a natureza toda está ordenada ao seu Criador, mediante a criatura racional. Esta criatura, dotada de consciência, tem por fim exercer a mediação de toda a natureza desprovida de razão, de consciência.
Assim, a elevação do homem, o enobrecimento do homem vai representar a elevação, o enobrecimento do meio ambiente. Foi por isso que desde os primeiros cristãos se tem dito que Deus se fez homem a fim de fazer dos homens deuses. Agora a proposta do tentador, insinuando a Eva que o afastamento de Deus resultaria em sermos deuses, foi realizada, não por obra e graça do próprio homem, mas por Jesus Cristo. Da mesma forma poderíamos dizer que Deus se faz natureza a fim de fazer da natureza coisa divina. Ele não desdenha em nada do homem como da natureza, do meio ambiente. Ao contrário, ao resgatar o homem, resgata com ele tudo o mais.
Foi isso que nos ensinou São Paulo na carta aos Romanos, há pouco citada. Toda a criação, “geme e sofre como que dores de parto até o presente dia, para participar da gloriosa liberdade dos filhos de Deus”. Assim que, o resgate do homem vai significar o resgate do meio ambiente. Nesse clima não há lugar para a depredação.

4. A Igreja Católica e o meio ambiente

Estou falando do catolicismo e do meio ambiente. Ora o catolicismo é representado pela instituição Igreja Católica. Cremos que Jesus Cristo confiou a Pedro e aos Apóstolos e seus sucessores o chamado “depósito da fé”, recordado na introdução.
Como instituição cabe perguntar-nos não só sobre a opinião das autoridades eclesiásticas a respeito do meio ambiente, como também a opinião e prática entre os membros dessa instituição.
Em primeiro lugar, sobre a opinião das autoridades basta que citemos as palavras do Papa João Paulo II proferidas na Zona Austral do Chile, Punta Arenas, no dia 04 de abril de 1987:
“Desde o Cone Sul do Continente Americano e frente aos ilimitados espaços da Antártica, lanço um chamado a todos os responsáveis de nosso planeta para proteger e conservar a natureza criada por Deus: não permitamos que nosso mundo seja uma terra cada vez mais degradada e degradante”[2].
Bento XVI igualmente, “em seu discurso aos jovens, no Estádio do Pacaembu, inicio de maio do ano passado, chamou a atenção sobre a ‘devastação ambiental da Amazônia’... e pediu aos jovens ‘um maior compromisso nos mais diversos espaços de ação’”[3].
O Catecismo oficial da Igreja Católica (Cat.), publicado em 1992, traz longo capítulo sobre a criação. Depois de falar da criação, toda feita para o homem, cita um sermão de São Pedro Crisólogo, do século V: “Quem é pois o ser que vai vir à existência cercado de tal consideração? É o homem... é para ele que existem o céu e a terra e o mar e a totalidade da criação” (Cat.nº 358).
Portanto, por dois motivos Deus tudo criou, para a manifestação de sua glória e para nossa felicidade. Ora, tendo “todas as criaturas o mesmo Criador e de todas estarem ordenadas para sua glória... existe uma solidariedade entre todas elas” (Cat. Nº 344). Tal solidariedade fundamenta a admiração e o respeito para com todo nosso meio ambiente.
A estas alturas o catecismo cita um trecho da poesia de São Francisco de Assis, O Cântico do irmão Sol:
Louvado sejas, meu Senhor,
Com todas as tuas criaturas,
Especialmente o senhor irmão Sol,
Que clareia o dia
E com sua luz nos alumia

E ele é belo e radiante
Com grande esplendor
De ti, Altíssimo, é a imagem.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Lua e as Estrelas,
Que no céu formaste claras
E preciosas e belas.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Vento,
Pelo ar, ou nublado,
Ou sereno, e todo o tempo,
Pelo qual às tuas criaturas dás sustento.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã água.
Que é mui útil e humilde
E preciosa e casta...

Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão fogo
Pelo qual iluminas a noite
E ele é belo e jucundo
E vigoroso e forte.

Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã, a mãe Terra,
Que nos sustenta e governa,
E produz frutos diversos
E coloridas flores e ervas...

Louvai e bendizei a meu Senhor,
E dai-lhe graças,
E servi-o com grande humildade[4]

Não podemos estranhar que São Francisco de Assis seja considerado o patrono da ecologia, do meio ambiente. Seus biógrafos descrevem quanto ele respeitava a natureza e quanto sofria quando se maltratavam animais ou vegetais[5].
Encontramos sobre o meio ambiente orientações da Igreja Católica de grande valor e muito atuais no Documento de Aparecida (DA), texto conclusivo da V Conferência do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. As cinco Conferências do Episcopado realizadas desde 1955 foram de grande importância para orientar a ação pastoral da Igreja em nossas regiões, mas também foram acolhidas e aprovados por toda a Igreja.
Segundo esse documento, o meio ambiente é tratado à luz de dois fatos de extraordinária importância, a criação e a redenção.
Pela criação valoriza-se a natureza toda como nosso ‘hábitat’ por Deus mesmo preparado para nós, como vimos de início. Pois, “o Deus da vida encomendou ao ser humano sua obra criadora para que ‘a cultivasse e a guardasse’” (DA, nº 470). Em conseqüência, “o homem e a mulher são convocados a viver em comunhão com Ele, em comunhão entre si e com toda a criação” (ib). Por isso, citando São Francisco de Assis, afirma “’nossa irmã e mãe terra’ é nossa casa comum e o lugar da aliança de Deus com os seres humanos e com toda a criação”. Por isso, “desatender as mútuas relações e o equilíbrio que o próprio Deus estabeleceu entre as realidades criadas, é uma ofensa ao Criador...” (DA nº125).
Pela redenção de Jesus Cristo, os seres humanos e toda a natureza foram “assumidos”, quer dizer elevados a um sumo, sendo Cristo a cabeça dos humanos e por eles de toda a natureza. São Paulo nos fala dessa relação ascendente para Cristo. Fala-nos do “desígnio” do Pai de “reunir em Cristo todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra” (Ef 1,10). Em conseqüência escreve: “...tudo é vosso. Mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1Cor 22-23).
Nessa dupla perspectiva, da criação e da redenção, o catolicismo entende o respeito pelo meio ambiente, pois que tudo participa da divindade de Cristo.
O DA passa a denunciar que tal respeito não acontece. Escrevendo que “a América Latina é o Continente que possui uma das maiores biodiversidades do planeta e uma rica sócio-diversidade”, constata que “a natureza foi e continua sendo agredida; a terra foi depredada; as águas estão sendo tratadas como se fossem mercadoria negociável pelas empresas” tanto nacionais como internacionais. Referindo-se à Amazônia, diz que “a crescente agressão ao meio ambiente pode servir de pretexto para a proposta de internacionalização da Amazônia”. Segue afirmando que “constatamos o retrocesso das geleiras em todo o mundo: o degelo do Ártico, cujo impacto já está se vendo na flora e na fauna desse ecossistema; também o aquecimento global se faz sentir no estrondoso crepitar dos blocos de gelo ártico que reduzem a cobertura glacial do Continente e que regula o clima do mundo” (DA nº 83s).
Em particular, diz o documento que “a riqueza natural da América Latina e do Caribe experimenta hoje uma exploração irracional que vai deixando um rastro de dilapidação, inclusive de morte por toda a nossa região...” (DA nº473).
Em vista de tudo isso, o documento de Aparecida exorta a todos que “é necessário dar especial importância à mais grave destruição em curso da ecologia humana” (DA nº472). Em seguida apresenta-nos cinco ações práticas para todos os membros da Igreja, maximamente para a Igreja na América Latina e no Caribe:
a) “Evangelizar” sobre o grande dom da criação ao homem, “educando-o para um estilo de vida de sobriedade e austeridade solidária”.
b) Apoiar, sobretudo “as populações mais frágeis e ameaçadas pelo desenvolvimento predatório” no esforço por melhor “distribuição da terra, das águas e dos espaços urbanos”.
c) “Procurar um modelo de desenvolvimento alternativo...baseado numa ética” fundamentada no Evangelho.
d) Empenhar-se por “políticas públicas” de “proteção, conservação e restauração da natureza...”.
e) Buscar “medidas de monitoramento e controle social sobre a aplicação dos padrões ambientais...” (DA nº 463).

Nesse documento da V Conferência do Episcopado da América Latina e do Caribe, temos, portanto, preciosos elementos que revelam quanto a Igreja Católica está preocupada com o meio ambiente, criado para o hábitat, a morada dos homens. É, portanto, em função do homem e de seu destino eterno que ela manifesta tanta preocupação, pois se trata do habitat por Deus mesmo criado para nós.

Conclusão

Felicito os promotores destas “Reflexões” sobre “Religiões e Meio Ambiente”, pois, as religiões, sobretudo as que se fundam na Bíblia, têm um grande apelo voltado ao amor por nossa casa comum onde vivemos. É a casa que Deus nosso Pai preparou com muito carinho para nós. Devemos para isso unir esforços.
Não há dúvida, houve um grande progresso na consciência ecológica de todos. Recordo que eu mesmo, na minha infância, não conseguia entender as restrições das primeiras leis de proteção aos animais e às plantas. Perguntava-me por que tais restrições se tudo me parecia tão abundante.
Falei do carinho com que Deus preparou nossa habitação. A sensibilidade pela natureza está muito relacionada com a experiência de um grande amor.
Penso que o amor é capaz de enriquecer nosso sentir pela natureza, como aconteceu com São Francisco de Assis e muitíssimos outros.
Uma coisa aliás controversa, um grande amor nos faz sentir-nos em comunhão com a natureza. Pode ser razoavelmente plausível o que muitos acreditam que podemos ter experiências chamadas de holísticas, oceânicas, de trans-consciência, uma espécie da identificação com o Cosmos. Basta citar os escritos de Fridjof Capra.
Acontece em algumas religiões, como na católica, uma espécie de identificação no amor com toda a criação. Poderia citar muitos exemplos. Permito-me narrar apenas um: Vive ainda uma mulher russa, Tatiana Guritcheva, professora de filosofia marxista, insatisfeita com sua filosofia e muito inquieta, por encontrar um sentido para a vida. Buscou todo tipo de experiências na linha do sexo e das drogas. Nessa busca terminou aderindo à ioga. Decorou vários mantras, entre eles até o Pai Nosso. No livro por ela escrito intitulado, Falar de Deus é perigoso, ela nos narra:

“Eis que um dia (tinha vinte e seis anos, então), eu caminhava por um campo, dizendo as palavras do Pai Nosso. Depois de tê-lo repetido umas seis vezes, sem ter a menor fé na existência de um ‘Pai celeste’, recebi subitamente a resposta. A coisa mais inesperada, mais inimaginável me aconteceu. Tornou-se claro para mim que Ele existia. Não o deus anônimo dos iogues, mas o Pai dos Céus, cheio de amor. Ele me amava e amava todas as coisas que me estavam ao redor. Tudo ficou tão claro para mim, como se estivéssemos no primeiro dia da Criação. A pobre paisagem em torno se iluminou de uma alegria incomum, cada planta, cada folha parecia fremir de júbilo. Dir-se-ia que o mundo inteiro acabava de sair de suas mãos extravasantes de amor. Naquele momento, eu nasci de novo”.
Depois dessa virada em sua vida ela foi expulsa da Rússia e, após viajar pelo mundo dando palestras, fundou um escritório na Alemanha, a fim de angariar fundos para as crianças abandonadas, sobretudo da África.
[1] Diálogus, 8; cf Cola, Silvano, Operários da Primeira Hora, Cidade Nova Editora, tradução Pepe, Enrico, 2ª ed. 1987, 14.
[2] Citado no Documento de Aparecida, nº 87.
[3] Ib nº 85.
[4] (Cat. 344; cf São Francisco de Assis, escritos e biografias, Vozes 1996, p.70s).
[5] Cf Inácio Larrañaga, O Irmão de Assis, Paulinas, 1980, p 102s.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Visão cristã do Social

Pastilha 86
A visão cristã do social

Na “pastilha” anterior escrevi sobre a noção de “realidade” no Documento de Aparecida. Volto ao mesmo assunto por achá-lo de muita importância.
Explicito aqui a me referir à “realidade” social, como se passou a entender abusivamente essa palavra. Por isso a coloquei entre aspas.
Há pouco tempo escrevi também sobre a visão cristã da história. Assim como a história também o social se enquadra na mesma categoria, a categoria do mistério de Cristo. Ele veio para “reunir em Cristo todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra” (Ef 1,10). Aqui, o social, como a história, ganha novo sentido, novo significado.
Não se trata por isso de qualquer balela. Sob o prisma da encarnação do Verbo, história e social, vistos na perspectiva humano-sociológica, se esfumam diante do sentido novo, transcendente, infinito de “todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra”. Arriscamo-nos e ficar girando como mariposas em torno de uma débil luz de vela num quarto escuro, e não percebermos o brilho do sol.
O Documento de Aparecida, desde sua introdução, nos aponta para essa grande luz que transcende o sociológico. Encontramos aí, com muita clareza: ... o que nos define não são as circunstâncias dramáticas da vida, nem os desafios da sociedade e as tarefas que devemos empreender, mas acima de tudo o amor recebido do Pai, graças a Jesus Cristo, pela unção do Espírito Santo. Acrescenta o documento que essa definição é para a Conferência dos Bispos de uma “prioridade fundamental” (nº 14). Antes disso, com efeito, vêm citadas as palavras de Bento XVI, fazendo eco a João Paulo II: não tenham medo de Cristo! Ele não tira nada e dá tudo Quem se dá a ele, recebe cem por um. Sim, abram, abram de par em par as portas a Cristo e encontrarão a verdadeira vida” (nº’5).
Onde está a dificuldade? Está na cultura moderna, formada por filosofias, assumidas por tendências teológicas, traduzidas e vulgarizadas pela mídia. E o que há de mais sério nessas ciências? Elas pretendem explicar tudo por aquilo que na filosofia clássica se tem chamado de “potência”, em oposição ao “ato”. Chama-se de potência o componente de qualquer realidade que é feito ser por outro componente ativo, dinâmico.
Toda realidade múltipla é composta desses dois componentes. Ambos formam a realidade. Nenhum deles é realidade a não ser quando unido ao outro. Um exige o outro. A relação mútua é constitutivo essencial de ambos. Temos exemplos abundantes. Uma planta é composta da potencialidade da madeira e do poder de atualização do componente vegetal. Assim nós também somos um corpo orgânico potencial feito atual pela racionalidade.
Que tem a ver com o nosso caso essa consideração? Acontece que, hoje, a mentalidade, a cultura, privilegia os componentes potenciais. Assim, na teologia se privilegia o humano. Em Jesus Cristo se acentua de tal sorte o humano que o divino passa facilmente à categoria de secundário, ou, como se reconheceu, passa à categoria de “suposto”. Acentua-se o histórico e o social ao nível do humano e sociológico, em detrimento da visão cristã dessas dimensões. Tomam-se esses conceitos despidos do sentido divino que, depois de Cristo, passaram a possuir.
O fato de privilegiar a potência redunda para muitos teólogos e agentes de pastoral, em querer fundamentar tudo partindo “de baixo para cima”. Entretanto, assim como a criação, também a revelação, não aconteceram dessa forma. Elas foram inesperada surpresa, pura gratuidade, fruto de uma escolha amorosa de Deus.
É verdade que, tomada essa amorosa iniciativa, Deus pôs à prova os destinatários, como convém a seres livres. Os primeiros pais foram provados por um livre ato de aceitação e correspondência. Sabemos do resultado descrito no livro do Gênesis. A redenção por Jesus Cristo também foi posta à prova de aceitação e correspondência na pessoa de Maria. Daí que os Santos Padres nos ensinaram que, assim como por um homem e uma mulher nos veio a perdição, do mesmo modo, por um homem, Jesus Cristo e por uma mulher, Maria, nos veio a salvação.
Desde então os cristãos estiveram a braços com a enorme questão: como entender melhor a ação livre de Deus sobre nós e a livre correspondência de nossa parte? Ou, como se relacionam graça e natureza, sobrenatural e natural?
A história parece mostrar que acontece um movimento pendular entre o sobrenaturalismo e o naturalismo. O natural e o sobrenatural são dois escolhos, Cila e Caribde, que formam uma estreita passagem pela qual muitas teologias não passam incólumes. Isso acontece em épocas como a nossa em que se rejeitou a metafísica, única ciência que poderia nos fornecer o paradigma da passagem por entre esses dois escolhos.
Os filósofos sociais discutiram muito sobre o sentido do social e não chegaram a um consenso. Os teólogos, chamados a se moverem ao nível do sobrenatural, onde o natural, o imanente, nada perde e ao contrário é transfigurado, não podem ficar enredados no trânsito da imanência. São solicitados a levantar os olhos às alturas em que Cristo, assumindo a natureza a elevou. Por isso, nos exortam os últimos Papas: não tenham medo de Cristo! Ele não tira nada e dá tudo. Em verdade, assim como assume nossa humanidade, com ela assume também a história humana e o social. Foi para exemplificar que chamei atenção para o caso do império romano. Não consta que os cristãos dos primeiros séculos desenvolveram uma vasta ação social para fazer ruir o império. Ele foi penetrado por infiltração do fermento que é o Reino de Deus (Mt 13,33). Jesus não disse que o Reino é a massa, mas disse que o Reino é o fermento. O fermento transforma a massa compenetrando-a e fazendo-a levedar.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Introdução ao Documento de Aparecida

Pastilha 86
Breve introdução ao Documento de Aparecida


Para definir qualquer coisa é preciso descobrir-lhe o componente que lhe dê unidade e, por conseqüência, identidade. Um aglomerado de material de construção não tem propriamente definição, identidade. Pode ser casa, ponte, muro, igreja, etc. O Documento de Aparecida (DA) dedica seis páginas, doze números, para dizer que, diante da globalização, que tudo unifica, é preciso buscar o componente unificador e dinamizador da vida cristã.
Confessam os bispos a dificuldade de conhecer a realidade por seu caráter fragmentário: Isso nos tem ensinado a olhar a realidade com mais humildade, sabendo que ela é maior e mais complexa que as simplificações com que costumávamos vê-la em passado ainda não muito distante e que, em muitos casos introduziram conflitos na sociedade, deixando muitas feridas que ainda não chegaram a cicatrizar. Também se tornou difícil perceber a unidade de todos os fragmentos dispersos que resultam da informação que recebemos... pois, muitos partem unilateralmente da informação econômica, outros da informação política... nenhum desses critérios parciais consegue propor-nos um significado coerente para tudo o que existe (nº36).
Já na introdução o DA aponta para o método que não mais consiste em partir dos dados sociológicos, porque o que nos define não são as circunstâncias dramáticas da vida, nem os desafios da sociedade, ou as tarefas que devemos empreender, mas acima de tudo o amor recebido do Pai graças a Jesus Cristo pela unção do Espírito Santo (n°14).
Concretamente, qual então o componente unificador do DA, o “fio vermelho”, como o chamou frei Clodovis Boff? A resposta vem de uma citação de João Paulo II, em Novo millenio ineunte, que diz: A todos nos toca recomeçar a partir de Cristo. Ainda em uma segunda citação de Bento XVI, tirada da Encíclica Deus Charitas est: não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande idéia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida... (DA nº12).
Mais adiante o DA insiste: sem uma clara percepção do mistério de Deus, torna-se opaco também o desígnio amoroso e paternal de uma vida digna para todos os seres humanos (DA nº35). Por isso: os cristãos precisam recomeçar a partir de Cristo, a partir da contemplação de quem nos revelou em seu mistério a plenitude do cumprimento da vocação humana e de seu destino (DA nº41)...
Por bem cinqüenta vezes o DA fala do “encontro com Cristo”. Esse é o sentido que dá unidade a tudo o que existe e nos sucede na experiência, e que os cristãos chamam de sentido religioso. Em referência à cultura latino-americana e caribenha conhecemos o papel tão nobre e orientador que a religiosidade popular desempenha, especialmente a devoção mariana... (DA nº37;cf nº43).
Bastam essas referências para dar-nos conta de que, tanto o método “ver, julgar e agir”, como a “opção preferencial pelos pobres” têm no DA um sentido bem diverso daquele que se lhe atribuiu e se o ensinou durante mais de meio século. Com efeito, logo ao afirmar que este documento faz uso do método ‘ver, julgar e agir’, também o define dessa outra forma: este método implica em contemplar a Deus com os olhos da fé, através de sua palavra revelada (DA nº19). Não mais, portanto, o define pelas situações dramáticas da vida, nem pelos desafios da sociedade (DA nº14; cf Discurso Inaugural, 3).
O mesmo deslocamento de sentido sofre a ‘opção preferencial pelos pobres’. Partindo da afirmação de Bento XVI de que tal opção está implícita na fé cristológica, afirma-se que ela nasce de nossa fé em Jesus Cristo, o Deus feito homem, que se fez nosso irmão (DA nº392; cf Hb 2,11-12). Portanto, somente na medida em que formos “nova criatura em Cristo” (2Cor 5,17) alcançaremos que os rostos sofredores de nossos irmãos pobres sejam vistos como rostos sofredores de Cristo (DA nº393), bem como o sentiu Teresa de Calcutá que fundou duas Congregações, feminina e masculina para ir às favelas e socorrer “os mais pobres entre os pobres”.
Falou-se em luzes e sombras do DA. As luzes estão caracterizadas por aquilo que disse acima, isto é, recomeçar a partir de Cristo e Maria... Pois, tal princípio de unidade vem preencher o vazio produzido em nossa consciência pela falta de um sentido unitário da vida... (DA nº38).
Sombras, vejo-as na ainda demasiada atenção que se dá nesse documento, como em muitos outros, ás análises sociológicas das conjunturas, mesmo depois de ter escrito que o que nos define não são as circunstâncias dramáticas da vida, nem os desafios da sociedade... (DA nº14).
Em verdade, o reino de Deus não se “constrói” a partir daí, dos movimentos sociais. Igualmente o objetivo imediato da evangelização não consiste na reforma das estruturas sociais. Não consta que os cristãos dos primeiros séculos tenham empreendido movimentos sociais para derrubar o império romano. E, não obstante, o império foi reformado, para dar lugar à civilização cristã ocidental que os dois últimos Papas tanto se empenharam por salvar seu grande valor, sobretudo diante do parlamento europeu.
A brevidade desta análise pode ter a vantagem de mostrar apenas a luz sob a qual se deve ler o DA e também mostrar a razão por que há a respeito tantas interpretações. Termino com a sugestão de lê-lo sob essa luz.

Pe. Achylle Alexio Rubin / achyllerubin@yahoo.com.br

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

O Papa e o sentido do sexo

O Papa e o sentido do sexo
Achylle Alexio Rubin /achyllerubin@yahoo.com.br

Acaba de ser publicado um livro sob o título “Teologia do corpo...uma introdução básica à revolução sexual de João Paulo II”. Publicado pela Editora Miryan de Porto Alegre, fone (51) 33410769, e-mail: editoramiryan@terra.com.br/
João Paulo II, ainda como padre, dedicou-se com empenho à pastoral da juventude. Diante do amadurecimento da vida sexual dos jovens, ele se aplicou em apresentar o sentido do sexo no contexto global da existência humana. Para tanto desenvolveu uma verdadeira teologia em torno do assunto. Convencido da importância do tema, voltou a ele com freqüência nos seus primeiros anos de Papa. Entre a eleição, setembro de 1979 e novembro de 1984, pronunciou 129 homilias, todas sobre o tema da teologia do corpo.
O ponto de partida desse ensinamento teológico vem a ser o fato de nós precisarmos das coisas materiais para dar-nos conta das espirituais. As realidades corporais nos dão de percebermos as espirituais. Chamam-se por isso de sinal, ou símbolo. Por exemplo, a água no caso do batismo representa sinal de realidade muito maior.
O maior porém de todos os símbolos foi certamente a natureza humana de Cristo. Ela nos proporcionou vermos Deus em sua humanidade. No prólogo ao Evangelho de João se diz que “ninguém jamais viu a Deus” e, não obstante, no capítulo 14 do mesmo Evangelho, Jesus afirma que “aquele que me viu, viu também o Pai”. Ver Cristo homem, nos proporciona vermos Deus, no sinal daquele homem. O Centurião romano que acompanhou a paixão de Cristo, ao presenciar o modo como esse homem se comportou, ao correr dessas horríveis cenas, exclamou: “Este homem era realmente o Filho de Deus!”.
O ponto de partida das homilias do Papa sobre o corpo humano parece ser, entretanto, o símbolo da união entre homem e mulher para representar realidades maiores e mais sublimes do que as meramente corporais.
A união entre homem e mulher tem uma dupla revelação: o amor em seu mais alto grau e a dimensão divina da procriação. De tal sorte que se torna uma experiência de espiritual grandeza. Assim que o problema, antes de ser o do sexo, é o do amor, de sua nobreza e de sua relação com Deus.
Recebi por escrito de ua mãe um testemunho já por mim escutado de viva voz de outras mães, e que eu desejaria ser confirmado por outras ainda. Transcrevo-o: “... engravidar foi o momento mais humano-divino que pude sentir em minha vida. Continuaria dizendo e me perguntando: que plenitude de Espírito Santo acontece numa mulher grávida?! O que é que enche de luz o coração dos pais nos nove meses de gravidez e, especialmente, no nascimento de um filho?! Meu marido, por exemplo, pegava a (última filha) recém-nascida e rodava com ela nos braços, dançava e me dizia: Quero outra igual a esta, quero mais, muito mais filhos, porque é bom demais! Durante essa terceira gravidez, todo mundo me perguntava se era a primeira, tanta era minha alegria e satisfação que eu transmitia. E dizer que eu já andava pelos 34 anos. Eu corria, eu sorria, eu cantava o tempo todo. E quando estive grávida do primeiro, aos domingos eu jogava canastra até altas horas e, segunda cedo, pegava no trabalho e não sentia canseira. E a gravidez do segundo? Estava então no segundo ano de faculdade e fazia estágio direto das 07 às 13 horas. À tarde freqüentava aulas. À noite saía para reuniões... Conclusão: sempre dizia que durante minhas gravidezes eu tinha um Deus poderoso dentro de mim, tanta era a disposição que sentia...”.
Acredito que esse testemunho ilustra bastante o novo livro que estou apresentando, “A Teologia do Corpo”... Oxalá muitos se decidam a lê-lo.

sábado, 26 de julho de 2008

Sobre a liberdade

Sobre a liberdade

Há pouco tempo, Bento XVI, em discurso sobre São Máximo, o Confessor, abordou o tema da liberdade, encontrado nos escritos desse santo. Houve alguém que, dando-se conta da importância desse tema, achou por bem divulgá-lo entre amigos. Estes, por sua vez, se questionaram amplamente, a respeito, sinal de que se trata de um assunto de grande interesse.
O referido discurso do Papa tratou do tema da liberdade nos escritos de São Máximo. Para se compreender a liberdade importa “compreender o dinamismo do ser humano que só se realiza saindo de si mesmo”. O homem não pode fechar-se sobre si mesmo, sob pena de não se realizar. Em nós mesmos não poderemos encontrar-nos. Onde então nos encontraremos? “Só em Deus nos encontramos a nós mesmos, nossa totalidade e plenitude”. Em conseqüência, “o homem que se fecha em si mesmo não está completo”.
O pecado consiste na negação. O homem foi induzido a dizer “não” a Deus, iludindo-se de que com isso seria livre, “chegaria à culminância da liberdade”. Não se deu conta que “o máximo da liberdade é o ‘sim’, a conformidade com a vontade de Deus”. No Evangelho encontramos a afirmação contundente dessa realidade, ao nos ensinar: “aquele que tentar salvar a sua vida, perdê-la-á. Aquele que a perder, por minha causa, reencontrá-la-á” (Mt 10,39).
Que significa, do ponto de vista filosófico, que nossa liberdade está condicionada ao “sim” e não ao “não”? Significa que nós somos seres essencialmente finalizados. Nós não temos em nós mesmos a plenitude. Somos seres carentes e, por isso, dependentes de quem é plenitude, de quem pode dar, de quem pode enriquecer-nos. Somos essencialmente voltados para um fim. Voltarmo-nos para o “não” é o mesmo que nos voltarmos para o vazio, para onde não há nada que possa plenificar-nos.
Voltarmo-nos para o “não”, representará duplo sintoma: ou ilusão, ou loucura. O mais freqüente é a ilusão de saciar-nos com produtos imaginários, sonho da imaginação. Uso um exemplo para ilustrar a loucura de encontrar a liberdade com o “não”. Se estou numa sala, no décimo andar de um edifício, posso decidir, porque sou livre, de sair pela janela. Verdadeira loucura.
Portanto, nós temos uma liberdade condicionada. Somos dependentes em tudo, da família, da sociedade, das realidades materiais. Nossa vontade não está em condições de dispensar esses condicionamentos. O mais profundo e abrangente entre eles é que somos seres condicionados pelo fim, a fonte de toda nossa realização, o Sumo Bem, diria o filósofo pagão, Aristóteles. Em sua “Ética a Nicômaco”, afirmou que todo homem busca a sua felicidade, sua realização. Os ignorantes, a buscam nos “prazeres, nas riquezas e nas honras”. Os sábios, porém, a buscam no Sumo Bem.
Finalmente, a liberdade está ligada de forma imediata à decisão de nossa vontade. Mas, de forma mediata, está ligada à nossa razão, que representa o farol a iluminar a estrada de nosso fim, solicitando a vontade de andar por ela. A razão, no exemplo acima, solicita nossa vontade a sairmos pela porta da sala e tomar as escadas, ou o elevador. Se a razão não iluminar esse cominho, significa loucura. Assim, creio eu, podemos entender que a liberdade consiste em sairmos de nós na direção do bem, do Sumo Bem, significa vivermos do “sim”. Foi o que Bento XVI desencarnou das obras profundas de São Máximo, do século VI; santo que sofreu verdadeiro martírio. O imperador de Constantinopla, primeiro, mandou cortar-lhe a língua, a fim de impedi-lo de falar, depois, mandou decepar-lhe a mão direita, a fim de impedi-lo de escrever e, em seguida, o exilou. Por tal martírio foi chamado de São Máximo, o Confessor.

Sobre a liberdade

quarta-feira, 18 de junho de 2008

As interpretações de Aparecida

As interpretações de Aparecida

Um destacado teólogo escreveu-me, em março último: Sinto que a teologia moderna (de hoje) é por demais “moderna” (alinhada ao imanentismo da modernidade). Há dificuldade nos teólogos e também, em parte nos Bispos (parte) de entender e apreciar, em sua natureza própria, a dimensão transcendente – espiritual – sobrenatural da fé. O que se escreve de Aparecida?! Cada um vê aí o que quer...
Não me parece difícil de vislumbrar duas óticas interpretativas do documento de Aparecida. Uma é a dos que o vêem à luz de Medellín e a outra a dos que o vêem à luz dos passos que a Igreja da América Latina tem dado, a partir, sobretudo de Santo Domingo. Já escrevi sobre isso dois artigos sob os títulos: A Igreja em correção de rota e Troca a Igreja de enfoque? (cf meu “blog”: achyllerubin.blogspot.com).
Os hermeneutas do enfoque de Medellín se valem das palavras chaves contidas no Documento, ver-julgar-agir e opção pelos pobres. Crêem poder justificar sua interpretação com essas palavras. Se esses intérpretes, entretanto, lessem o documento com maior atenção, iriam perceber que, tanto para o método ver-julgar-agir, como para a opção pelos pobres, o mesmo documento dá outro sentido. Não se parte mais simplesmente do “ver”. Parte-se do contemplar a Deus para que vejamos a realidade que nos circundo à luz de sua providência (nº19). Por sua vez a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica, segundo as próprias palavras do Papa (nº 392). Conclusão: sem a clara percepção do mistério de Deus, torna-se opaco também o desígnio amoroso e paternal de uma vida digna para todos os seres humanos (nº35).
Em conseqüência, não se parte do “ver”, pois, os cristãos precisam recomeçar a partir de Cristo, a partir da contemplação e de quem nos revelou em seu mistério a plenitude do cumprimento da vocação humana e de seu sentido (nº 41). Fica evidente que, se a opção pelos pobres está implícita na fé cristológica, então essa opção nasce de nossa fé em Jesus Cristo (nº 392) e não das causas detectadas pelas análises das conjunturas sociais, políticas e econômicas.
Lido o documento de Aparecida sob essa luz, ele ganha outro sentido, diverso daquele que muitos tentam ainda defender. Antes da realização da grande conferência, tenho respondido a alguém que me perguntava quais seriam as perspectivas do documento final: é possível e até provável, respondi, que o documento resulte de um certo compromisso entre diversas correntes de pensamento. As várias interpretações parecem apontar nessa direção.
Estou, aliás, bem curioso por saber qual a razão por que o artigo de frei Clodovis Boff, na REB de outubro do ano passado, foi colocado em último lugar, depois de vários outros intérpretes. Não será porque ele, sem fazer nomes, faz uma valiosa autocrítica da Teologia da Libertação e contesta o modo dos demais interpretarem Aparecida?
Considero, entretanto, que o máximo problema no seio da Igreja, e que comanda todas as interpretações, consiste naquele apontado acima: a dificuldade de se entender a vida sobrenatural. Ela se tornou indigesta, depois de ter sido involucrada no slogan do sobrenaturalismo. No entanto, reside ali a fronteira entre uma visão de autêntica vida cristã e uma visão de mera cultura cristã.
Escrevi um artigo sobre a visão cristã da história, comentando a celebre Carta a Diogneto, do século II (cf meu blog). Pois bem, o sobrenatural, tanto se refere ao indivíduo, como se refere à história e à sociedade. É verdade que Cristo “assumiu” a natureza humana, mas não a assumiu para deixá-la no nível em que se encontra de fato. Assumiu-a para elevá-la a um sumo, a uma culminância. O mesmo ele fez com a história, com a sociedade. Assumir, com efeito, significa elevar a um sumo, a um nível mais alto.
A filosofia da história há muito tempo está buscando um sentido para a história, uma compreensão dos acontecimentos que se sucedem. Sobre isso, porém, os filósofos divergem grandemente.
A teologia da história, entretanto, tem outra visão dos fatos e não há como titubear na busca de sua compreensão. Aqui os fatos históricos ganham um sentido novo e bem determinado. Não são produto de projetos humanos, orientação humana. São projetados e dirigidos pela divina Providência. A nós compete exercitar-nos, tanto na sensibilidade para perceber a intenção da Providência, quanto na docilidade para segui-la. Esse é o agir consoante o sentido teológico e sobrenatural da história.
Uma sociedade justa, entendida como objetivo da evangelização, distrai do verdadeiro sentido. Ela é alcançada como conseqüência de uma visão cristã da história e não como objetivo primeiro: buscai em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas em acréscimo (Mt 6, 33).
A interpretação de um escrito como o documento de Aparecida deve, portanto, obedecer a uma visão teológica, sobrenatural, do contrário desvia-se de seu verdadeiro sentido e se criam confusões.
Pe. Achylle A. Rubin / achyllerubin@yahoo.com.br

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Corpus Christi

Hoje é Corpus Christi
Jesus veio da parti do Pai para provar de forma eminente, infinita o quanto nos ama. Como quem ama dá o que tem de melhor à pessoa amada, ele nos deu o que tinha de melhor. Por isso, não deu coisas, deu-se a si mesmo. O amor começa por dar coisas, mas termina dando-se a si mesmo. Deus nos deu tudo, toda a criação: "Deus disse: eis que eu vos dou toda a erva... todos os animais... todas as aves dos céus... os repties e tudo em que haja sopro de vida" (Gn 1,29s).
Não contente em nos dar tudo, deu-nos a si mesmo, a sua natureza, fazendo-nos filhos seus: "... necessário vos é nascer de novo..." (Jo 3,3s). Não contente com isso, deu-se a nós em forma de alimento e bebida, instituiu a eucaristia. Primeiro prometeu, com bastante antecedência. Tendo multiplicado cinco pães e três peixinhos para alimentar cinco mil homens, além da mulheres e crianças, no dia seguinte a multidão o procurou. Ele os admoestou: "... buscais-me, não porque vistes os milagres, mas porque comestes dos pães e ficastes fartos... o verdadeiro pão é o que desce do céu e dá vida ao mundo... Eu sou o pão da vida" (Jo 6,26s).
Poucos horas antes de ser entregue nas mãos da maldade humana, entregando-se a si mesmo para revelar o amor, pois, "ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos" )Jo 15,13), Ele, de forma inesperada e simples, deu-se em alimento e bebida. Na última ceia, "tomou o pão, deu graças, o partiu e o deu, dizendo: "Isto é meu corpo', comei dele todos, e logo tomou o calice com vinho e disse: 'este é o cálice de meu sangue, bebei dele todos'.
Portanto, aquele que ama não se contenta em dar coisas, dá de si mesmo. Daí que o amor esponsal foi chamado por João Paulo II de ícone do amor de Deus. Daí que em todo o Antigo Testamento Deus comparou seu amor como o amor do esposo para com sua esposa. Amem

Amor, esquecimento de si

Amor, esquecimento de si

Estou escrevendo sobre o sacramento do matrimônio. Chamei-o de sacramento do amor. Entendi então que devia escrever, antes de mais nada, sobre o amor. Iniciei mostrando o amor como uma realidade paradoxal porque busca união máxima e, ao mesmo tempo, máxima distinção; união de natureza e distinção de pessoas. Na Trindade acontece de forma perfeita tal paradoxo insondável: Uma só natureza, um só Deus, em três pessoas. Comentei também que o amor esponsal é exclusivo e indissolúvel, não só por haver uma lei que postula isso, mas por ser exigência da própria natureza do amor esponsal.
Além dessas características importa salientar outra mais: O amor leva a pessoa ao esquecimento de si. O egoísmo centraliza a pessoa sobre si mesma. O amor faz com que a pessoa esqueça de si, se volte toda para o outro. Na pessoa amada ela se perde, literalmente. Passa do egoísmo, da centralidade do próprio eu, para a centralidade do outro. Talvez seja essa a razão porque o povo diz que o amor é cego. Trata-se certamente de uma avaliação egoísta, pois o amor é cego para seus próprios interesses, por estar voltado todo para o outro. As mães sabem disso. Uma delas, falando a linguagem do egoísmo, me disse: “O coração de mãe é o diacho!”.
Jesus expressa no Evangelho essa radicalidade do amor, quando afirma: ... quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á: mas, quem sacrificar a sua vida por amor de mim, salvá-la-á” (Lc 9,24). Essa é outra expressão do paradoxo do amor. Como se entende que se perder significa salvar-se? Nossa cultura egoísta, feita de imediatismos práticos não consegue entender, por não entende mais o amor.
Duas indicações nos auxiliam na compreensão desse paradóxo. De um lado, a experiência nos mostra que só o amor nos faz felizes, isto é, nos salva. Um outro texto do Evangelho nos aponta onde está a felicidade ao nos dizer: ... quando deres uma ceia, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. Serás feliz porque eles não têm com que te retribuir; mas ser-te-á retribuído na ressurreição dos justos (Lc14,13-14). Serás feliz porque é com tais convidados que o amor acontece. E o amor nos faz felizes. De outro lado, Jesus que se identificou com esses “pequenos” (Cf Mt, 25,40), no dia do julgamento saberá retribuir (Mt 10,42).
Estou escrevendo que o amor nos leva ao esquecimento de nós mesmos, ele nos leva a perder-nos na pessoa amada. No amor somos levados a nos despojar, a nos esvaziar de nós mesmos em favor do outro. Novamente, perdendo-nos nos ganhamos. Quem poderá entender tal procedimento? Somente quem o experimentar. Nossa cultura nos afasta da experiência do amor.
Jesus que havia dito ninguém tem mais amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos (Jo 15,13), efetivamente, esvaziou-se de todas as suas prerrogativas, de todos os seus títulos. Não apelou para nenhum deles, nem sequer o de ser Deus. Entendeu-o muito bem São Paulo: Sendo ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas esvaziou-se de si mesmo, assumindo a condição de escrevo e assemelhando-se aos homens... (Fl 2,6).
No esvaziamento de si, quem ama também dá à pessoa amada aquilo que tem de melhor. Jesus não deu coisas mas deu de si mesmo: Ao dar a vida, revelou-nos o amor. Além disso fez-nos participantes de sua própria natureza (2Pd 1,4) e, deu-nos a si mesmo em alimento e bebida. Portanto, deu de si, do que tinha de melhor. São Vicente Pallotti sentiu isso quando escreveu: Deus me ama tanto que, se pudesse me fazer verdadeiro Deus, me faria verdadeiro Deus.
Em tal clima de amor, se a pessoa amada tiver que retribuir não o fará nunca por temor, mas será igualmente e sempre também por amor, por pura gratuidade. Jesus amou gratuitamente e quis acordar um nós a mesma atitude. Não exigiu nada em troca, não cobrou nada de ninguém, não ameaçou, não julgou ninguém, não condenou, numa palavra, não atemorizou. Só teve palavras de perdão. Se, com efeito, o amor não fosse gratuito criaria devedores e os devedores temem, como diz o provérbio popular: quem não deve não teme, mas quem deve teme.
Em conseqüência de tudo, o amor tem o caráter de certa ingenuidade. O que ama não vê malícia na pessoa amada. Deixa-se facilmente ludibriar. Não busca defender-se da maldade, não se defende porque se entrega.
Há quarenta anos atrás um grande pregador suíço, Pe. Maurice Zundel, fez uma conferência, publicada há poucos anos numa revista francesa com o título: Sauver Dieu de nous mêmes (salvar Deus de nós mesmos). Na verdade, Jesus Cristo nosso Deus, entregou-se nas mãos da maldade humana: o Filho do homem vai ser entregue às mãos dos pecadores (Mc 14,41). Entregou-se por amor aos homens, mas os homens não o salvaram: Os pecadores que ele ama com predileção – Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores (Mt 9,13) – em lugar de salvá-lo, o condenaram à morte.
Entregou-se por vontade do Pai que o enviou a nós. E a vontade do Pai não foi uma vontade sádica. Foi a intenção do Pai, o amor do Pai por nós, a fidelidade à sua própria palavra que havia prometido salvação. E a salvação se faz pelo caminho do amor. Isso tudo aconteceu para que, se alguém tiver que segui-lo, o siga por amor e não por temor. Arrisca-se perder toda a humanidade, com tal que, ao menos alguns, o sigam por amor.
Tem-se recordado sempre o amor de mãe para nos dar uma leve compreensão do amor de Deus para conosco. Recordo sempre de uma triste cena televisiva do trágico episódio da mortandade na prisão de Carandiru de São Paulo. Um repórter mostrava do lado de fora da prisão ua mãe chorando convulsivamente. Perguntou-lhe: Senhora, por que choras assim? Respondeu-lhe ela: Mataram meu filho, mataram meu filho! O repórter iluminou seu rosto. Estava cheio de ferimentos que esse seu filho drogado lhe tinha feito com suas agressões.
O amor não se defende. Se a pessoa amada não o defende ele não se defende. Facilmente se deixa explorar. Sua vitória, porém, consiste em mover o outro ao amor, convertê-lo. Aliás, ninguém transforma ninguém de fora para dentro. Somos seres livres e somente conseguiremos mudar alguém de dentro para fora, movendo-o ao amor e pelo amor. Concluo recordando que o esquecimento de si tem poder. Ele apela e se insere num poder mais alto. Aliás, que seria da mãe como a minha, que gerou quinze filhos, se o amor não tivesse uma transcendência? Que frustração! Entretanto, Jesus, na véspera de sua paixão, quando estava para ser traído e levado à morte de cruz, disse: Agora é glorificado o Filho do homem, e Deus é glorificado nele (Jo 13,31). E a glorificação aconteceu. Ao terceiro dia Deus o exaltou soberanamente e lhe outorgou o nome que está acima de todos os nomes... para que toda língua confesse... que Jesus Cristo é Senhor (Fl 2,9-11; cf Deut 6,4). Há de chegar o dia feliz em que o amor triunfará.

sábado, 10 de maio de 2008

Jubileu particular

Jubileu particular
Achylle Alexio Rubin / achyllerubin@yahoo.com.br
Blog: achyllerubin.blogspot.com
Dia primeiro deste mês de maio comemoramos a jubileu de ouro do Colégio Máximo Palotino. Na esteira desse evento estou também eu comemorando um jubileu particular. Completo nestes dias cinqüenta anos de professor de filosofia. Professor no Colégio Máximo Palotino, professor na UFSM, professor nos saudosos cursos de direito e economia dos beneméritos irmãos maristas.
Minha socrática consciência, ou minha pobre auto-estima me sussurram ao ouvido: em cinqüenta anos aprendeste tão pouco e obtiveste tão parcos resultados?! Entretanto, ao tentar auxiliar nossos jovens, faço valer a palavra de Pedro ao coxo de nascença: “Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho, eu te dou” (At 3,6).
Com efeito, nesses cinqüenta anos fiz o que minha frágil natureza e minha limitada inteligência me permitiram fazer: dar daquilo que minhas convicções e possibilidades me indicavam. Ao concluir o doutorado em filosofia, meu saudoso orientador de tese entendeu dar-me um conselho, dizendo-me: nos primeiro três anos de professor, considero prudente usares um manual. Eu lhe respondi com grande convicção e maior ousadia: ainda que lecione mal, penso ser preferível fazê-lo sem o uso de manuais e apostilas.
Mal imaginava então a mão de obra que essa minha pretensão iria me custar. Mas acredito ter sido premiado. Ao menos para meu proveito. Aprendi a me tornar aprendiz de filósofo, não repetindo o que os outros pensaram, mas mostrando aos alunos a arte de filosofar. Não tratei de ensinar filosofia, mas sim de ensinar a filosofar.
Aprender a história da filosofia, o pensamento dos outros, é certamente importante. Não é, porém, suficiente para se criar um filósofo. Tomás de Aquino, em seu tratado De Coelo (Sobre o Céu), escreve que a função da filosofia “não é saber o que os homens pensam, mas qual é a verdade objetiva”. Nessa busca deverá, de preferência, ocupar-se a mente humana.
Para tanto o aluno necessita ver o exemplo de alguém que filosofa diante dele. Apelei para a imagem do aprendiz a pintor. O aprendiz a pintor começa copiando pinturas. Mas se quiser progredir na arte, deverá libertar-se da dependência dos outros para, finalmente, tornar-se autêntico pintor com obras originais. Assim, o curso de filosofia não deverá ter como objetivo ensinar filosofia, mas ensinar a filosofar.
Com esse objetivo promoveu-se, ainda nos idos de sessenta, uma associação filosófica, contando como um dos principais animadores o saudoso Sergio Pires, então aluno do curso de filosofia. Essa associação promoveu seminários para alunos e professores. Em 1967, por exemplo, animou um desses seminários sobre filosofia das ciências, ao qual tomaram parte um grande número de professores, entre eles o próprio Dr. Mariano da Rocha Filho, fundador e reitor da Universidade. O conteúdo desse seminário publiquei-o há poucos anos sob o título “Três lições de filosofia das ciências”.
Ao completar, neste mês de maio de 2008, cinqüenta anos de professor de filosofia, sou muito grato por ser o que sou devido às circunstâncias a mim oferecidas por uma Providência misteriosa e cheia de amor que me conduziu, malgrado minhas resistências físicas, morais e espirituais. Incluídas nessas circunstâncias estão muitas pessoas caridosas que depositaram confiança em mim, às quais sou imensamente agradecido.

domingo, 20 de abril de 2008

Coordenadas filosóficas sobre Direito

Coordenadas filosóficas sobre Direito

Esta obra do jurista Eugênio Antônio Pozzobon me estimula a escrever algumas coordenadas filosóficas sobre o tema do direito. O estímulo parte, tanto de um desejo expresso do autor, quanto das várias vezes que o mesmo me tem citado em sua obra.
A filosofia do direito ganha, hoje, muita importância por causa dos repetidos apelos por uma ética do comportamento social e político. A ética, com efeito, pertence ao domínio da filosofia e o direito está essencialmente vinculado à ética.
Em se tratando de filosofia, importa iniciar com uma palavra sobre a mesma. A variedade de correntes filosóficas, postula uma prévia consideração. Para simplificar a tarefa poderíamos apresentar duas delas que mais exercem influência nos debates sobre o direito: a filosofia realista e a positivista.
Os realistas, discípulos sobretudo do grande filósofo-teólogo, Tomás de Aquino, afirmam que a filosofia é uma ciência que se ocupa de conhecimentos do mundo real, adquiridos a partir da experiência. Tais conhecimentos, não permanecem limitados aos dados físicos da experiência sensível da realidade, mas, pelas manifestações sensíveis da mesma realidade, nós chegamos a entender que ela é mais do que suas aparências físicas. Por exemplo, vemos uma planta, sua cor, sua figura, seus produtos, flores e frutos, seu crescimento, etc. e entendemos que ela, com seu auto-mover-se organiza os elementos que escolhe da terra e da luz e se fazer crescer e produzir frutos. Tal “poder”, tal “energia” não se pode ver, mostrar, apalpar, medir, pesar, etc. Sua realidade é muito mais do que sua aparência. Transcende, ultrapassa o físico. Num sentido lato, é trans-físico, meta-físico. A dimensão física nós a vemos, a meta-física nós a entendemos.
A filosofia positivista, por sua vez, teve um grande impulso em nossos dias com o filósofo francês Augusto Comte (1798-1857). Na área do direito, creio não errar se digo que essa filosofia tem, hoje, uma preponderante influência.
Resumindo, esse filósofo construiu um amplo sistema explicativo da evolução social através dos tempos. Achou que a humanidade tem passado por três grandes fases de evolução. Num primeiro tempo teria predominado a era teológica ou fictícia, num segundo, a era metafísica ou abstrata, num terceiro, porém, estaríamos vivendo a era científica ou positiva.
De fato, Augusto Comte é considerado o fundador da sociologia, ciência positiva. Escreveu Curso de filosofia positiva onde afirma: “Em suma: ciência, logo previsão; previsão, logo ação...”. Salta à vista a semelhança com certa teologia destes últimos tempos fundamentada na sociologia, no método “ver-julgar-agir”, também ela considerando a metafísica como coisa abstrata.
Em conseqüência, o positivismo se caracteriza como uma filosofia cujo único método de conhecimento é o das ciências exatas, ou positivas. Essas ciências seriam o único caminho para resolver os problemas da humanidade. Inclusive, com essa base das leis sociais consideradas como divinas, Comte pretendeu fundar a religião do “amor à humanidade”. A adoração se deve à “divina” Humanidade.
Temos exemplos clássicos de endeusamento das ciências como resposta para todos os problemas humanos. Por exemplo, um retrato perfeito dessa “fé” encontramo-lo em Silvio Romero (1851-1914) que a Enciclopédia e Dicionário ilustrado Koogan/Houaiss caracteriza como “filósofo, sociólogo, polemista, crítico e historiador da literatura brasileira”. Escreve esse autor: “como a linguagem, como a mitologia, como a religião, a poesia perdeu todos os ares de mistério, depois que a ciência do dia, imparcial e segura, penetrou um pouco mais amplamente nos mistérios das origens. Este resultado foi devido à alta crítica histórica e filosófica, depois que o sopro das ciências naturais rejuvenesceu. A metafísica, com todo o seu histerismo, bem pouco contribuiu para ele. A poesia é um resultado da organização humana, nada tem de absoluto, nem de sobrenatural... A época de Darwin, Moleschout... e, naturalmente, de Comte, Mill e Spencer... Esses nomes exprimem a grande transformação das ciências da natureza, invadindo a esfera das ciências do homem... A popularização da ciência é um fenômeno dos últimos tempos e a melhor conquista da expulsão do sobrenatural. Tudo é relativo no universo e no homem, nada existe que faça medo. Para que, pois, o mistério?” (cf Contos do fim do século, 1878, V,VIII).
Tal “fé”, hoje, é contradita por todos os verdadeiros cientistas, mas ela foi a que levou os positivistas a excluir do direito as necessárias referências à natureza metafísica da pessoa, sem as quais não há o que todos buscam, a ética no comportamento social e político.
Ainda, para a filosofia do direito, importa recordar outra fonte do positivismo, o filósofo de Königsberg, Emmanuel Kant (1724-1804). Do ponto de vista do conhecimento da realidade também ele só admitiu, na esteira de David Hume, o método das ciências. Admite termos idéias de realidades não sensíveis, mas só idéias. Elas não correspondem com a realidade. Para ele, por isso, filosofar é pensar de acordo com um esquema de idéias. Em razão disso só admitiu o direito positivo, civil, assim que todo direito só se funda na lei positiva.
Essas colocações chamam em causa duas questões, levantadas pelos filósofos realistas, uma sobre a natureza do direito e a outra sobre o fundamento do direito. Ambas as questões pertencem ao objeto próprio da filosofia. Pois, pertence à filosofia investigar a natureza das coisas e o sentido delas, origem e fim.
Primeira questão: em que consiste o direito? Segundo a tabela das categorias, ou classes de realidades, elaborada, primeiro por Aristóteles em sua metafísica e depois acolhida por Tomás de Aquino, o direito é considerado na categoria da “relação”.
A relação se dá quando duas ou várias coisas se referem uma à outra, como que “ligadas” por um terceiro elemento, formando assim uma determinada ordem. Por exemplo, numa sala de aula há uma ordem de muitas coisas – alunos, mesas, cadeiras, quadro negro, mapas, etc. – todas ordenadas por referência a um terceiro, à cátedra. Temos aí uma ordem. Suponhamos não houvesse a cátedra e todas as coisas não estivessem a ela ordenadas, não se poderia dizer que se trata de uma sala de aula, mas, por hipótese, de um depósito. Na desordem as coisas não têm relação umas com as outras e, por isso, não há unidade, não há ordem.
Numa relação entram três componentes. No exemplo dado entram todos aqueles objetos, ordenados, voltados um para o outro, em referência à cátedra. Então se diz que essas diversas coisas são o objeto da relação, enquanto que a cátedra é o sujeito, e a posse, o fundamento. Constitui-se assim uma ordem.
No direito há o objeto que são realidades, o sujeito é quem as possui e o fundamento é a posse, a propriedade. As coisas se referem ao sujeito como sua propriedade. Trata-se de uma relação de posse. Se as realidades passam a ser posse, o sujeito passa a ser possuidor.
Torna-se alguém possuidor por atos diversos, como a ocupação de uma coisa sem dono, a doação, a compra, etc. Tais atos criam uma relação de possessão que implica um direito que exige ser reconhecido e respeitado.
Segundo questão. Onde então se funda esse reconhecimento, esse respeito? Funda-se primariamente na própria natureza humana, nos seus valores. O homem é um ser racional, tem consciência de si mesmo, é autoconsciente, é indivíduo autônomo, livre. Exerce “posse” de si mesmo, de seus valores humanos, é dono de si. Tem absoluto direito sobre si. Não pode ser “invadido” naquilo que é seu ser mais íntimo e também em tudo o que se refere à essa sua intimidade, os valores pessoais, e também suas posses. Nessa base houve a “Declaração dos direitos humanos” proclamada pela ONU. a fim de explicitar os direitos fundamentais da pessoa.
Hoje, o direito à vida biológica está em pauta com a discussão em torno do aborto e da eutanásia. Os que defendem essas práticas são os positivistas que crêem que o direito brota da lei positiva, civil, exarada pela autoridade civil e justificada pela manifestação da maior porcentagem de opiniões individuais. Entretanto, a pessoa humana tem direito à vida, mesmo quando ela não está ainda, ou não está mais de posse do exercício de sua razão, de sua consciência. Basta seja pessoa humana para exigir ser respeitada. Trata-se de um ser que, graças à consciência de si, se possui. A mais radical das posses, fundamento primeiro do direito, é o fato de ser pessoa, a posse de si mesmo. Desrespeitada esta, todo o direito rui em frangalhos.
A lei positiva permite muitos absurdos que estão acontecendo. Pela lei positiva todos os ditadores justificaram a violação dos direitos humanos. Temos abundância de exemplos de tais violações muito próximos de nós.
O fundamento do direito vai mais longe. Diz respeito ao sentido último da vida humana. O homem, ser racional, busca incansavelmente ser feliz. Está constantemente em busca daquilo que possa preencher seu desejo de felicidade. Não se contenta com bens limitados. É um ser insaciável. Sua ânsia de posse não tem limites. Isto revela busca constante da posse do bem maior, do “Sumo Bem”, como o chamou o grande filósofo, Aristóteles.
Em conseqüência, toda posse, todo direito sobre bens limitados, em definitivo, não o saciará nunca, não o fará feliz. É clássica a afirmação de Santo Agostinho: o homem estará sempre insatisfeito enquanto não repousar em Deus. Segue-se que os direitos sobre bens limitados somente encontrarão sentido se orientados, ordenados à ”conquista” do Sumo Bem, pois é isso que representa a insaciabilidade da pessoa. Segue-se ainda que os responsáveis primeiros pelo Bem Comum, as autoridades, não podem deixar de subordinar o direito, as leis, o direito positivo, ao Sumo Bem, sob pena de atropelar os direitos humanos, o direito à felicidade.
A autoridade que não subordinasse o direito ao Sumo Bem, orientando-o para a verdadeira felicidade dos cidadãos, não entende de humanidade e continuaria criando na sociedade um clima de insatisfação crescente. Não será com coisas materiais que se preencherá o desejo de ser feliz. O desenvolvimento econômico, a longo prazo, não trará a felicidade. Isso está visto nos sistemas liberal e socialista. Não está provado que as pessoas são mais felizes nesses sistemas. Bens materiais abundantes desligados do Sumo Bem, manifestam-se incapazes de realizar a felicidade.
Aqui chegamos à conclusão maior. Em última análise o direito se funda no transcendente, no Sumo Bem que os judeus, os cristãos e os muçulmanos o reconhecem como Deus.
Essas são algumas coordenadas da filosofia do direito que poderão encaminhar um diálogo frutuoso entre os juristas.

Achylle Alexio Rubin / achyllerubin@yahoo.com.br

terça-feira, 4 de março de 2008

Quando é justo o Direito?

Crônica 40
Quando é justo o direito?

Nestes dias ocupei-me de filosofia do direito. O jurista, Pe. Eugênio Pozzobon, pediu-me um prefácio para seu novo livro sobre os fundamentos do direito. Tentei definir o direito e, sobretudo, apontar as razões que o tornam justo. Quando será justo o direito?
Em resumo, a natureza do direito pertence à categoria da “relação”. Aqui se trata da relação de posse. Vários objetos, graças a um título de posse, são possuídos por alguém. Há uma relação do objeto possuído com o sujeito possuidor, fundamentada pela posse. Os títulos de posse podem ser o da herança, o da apropriação de bens sem dono, o da doação, o da compra, etc. Mas o mais importante de todos os títulos trata-se daquele que diz respeito à posse da própria natureza racional, que somos. Como assim?
Nossa natureza, graças à sua racionalidade, manifesta que somos posse de nós mesmos. A consciência da pessoa dá testemunho de seu ser individual, autônomo, personalidade. Como tal, há em nós uma natural exigência ao reconhecimento e ao respeito. Opomo-nos a toda sorte de invasão à nossa intimidade. É a própria consciência que revela à pessoa humana ser, antes de tudo, possuidora de si mesma, com exigência a ser respeitada por si mesma, como sujeito privilegiado de direito que não permite ser violado por ninguém. Trata-se de um direito primário, fundamental. Os psicanalistas se esforçam por libertar o adulto dos traumas da infância, criados pela falta de respeito por seu direito primário. Foi isso também que orientou a Declaração dos direitos humanos da ONU.
Além do direito individual há o direito social. Este acontece quando várias ou muitas pessoas possuem um bem em comum, o “Bem Comum”. A posse comum de um bem funda a ordem social, uma rede de relações mútuas em vista do mesmo bem. Como o direito individual estabelece relações mútuas, assim o direito social estabelece relações e obrigações sociais.
O positivismo, cujo fundador foi, na época moderna, o filósofo e sociólogo Augusto Comte, não consegue elaborar bem esses direitos fundamentais, pois eles ultrapassam o direito positivo, único reconhecido pelos positivistas. A lei positiva permite muitos absurdos que estão acontecendo. Pela lei positiva todos os ditadores justificaram a violação dos direitos humanos. Temos abundância de exemplos muito próximos.
O fundamento do direito, entretanto, vai mais longe, transcende o direito básico, imediato, fundado na natureza da pessoa. Apóia-se, ainda, sobre o sentido último da vida. O homem, ser racional, busca incansavelmente ser feliz. Está em constante busca daquilo que possa preencher seu desejo de felicidade. Não serão os bens limitados que irão satisfazê-lo. O homem é um ser insaciável. Sua ânsia de posse não tem limites. Isto revela ânsia pela posse do bem maior, do “Sumo Bem”, como o chamou o grande filósofo, Aristóteles.
Em conseqüência, toda posse, todo direito sobre bens limitados, em definitivo, não o saciará nunca, não o fará feliz. Tais bens só encontrarão sentido se orientados, ordenados à consecução do Sumo Bem. Assim que, todo direito passa pela pessoa individua e se orienta, se subordina ao Sumo Bem. Não será com coisas materiais, ou intermédias, que se preencherá o desejo de ser feliz. O desenvolvimento econômico, a longo prazo, não traz felicidade. Não levando em conta a ânsia do Sumo Bem, termina-se atropelando os direitos humanos, o direito à felicidade.
A autoridade que não subordinasse o direito ao Sumo Bem, subordinando a ele todo direito, revela que não entende de humanidade, que não sabe, ou nega a aspiração mais profunda do ser humano. Por mais abundantes que sejam os bens materiais, dissociados, porém, do Sumo Bem, manifestam-se incapazes de realizar a felicidade. Não consta que os mais ricos sejam mais felizes. Muito pelo contrário.
Portanto, só é justo o direito que se oriente por todos os valores humanos desde a fonte imediata da própria natureza, até a fonte última, o Sumo Bem.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Troca a Igreja de enfoque?

Troca a Igreja de enfoque?

Na última crônica tratei da troca de enfoque da Igreja no Brasil. Um jovem estudante de pós-graduação em filosofia manifestou-me o desejo de saber mais. Escreveu-me: “o senhor não explicitou onde vê isso... gostaria de saber sua opinião sobre esse novo fenômeno, animador para todos nós”.
Não há dúvida a troca de enfoque da Igreja é consoladora. Já escrevi a respeito ao encabeçar uma crônica com o título: “a Igreja em correção de rota”.
Vejo que a preocupação dos dois últimos Papas esteve voltada no sentido de reorientar posições teológicas e pastorais de nossa Igreja. Basta recordar que na década de oitenta a Santa Sé nos mandou a respeito dois documentos, chamados de Instruções. Em seqüência João Paulo II escreveu uma “mensagem ao episcopado do Brasil” na qual advertia sobre três condições para uma autêntica teologia católica.
Primeira condição. A Teologia que prevalece no Brasil será “oportuna” e até “necessária” se for “coerente com os ensinamentos do Evangelho, da Tradição viva e do perene Magistério da Igreja” (nº 5).
Segunda condição. Para que a teologia em questão alcance os desejados frutos de libertação, os pastores devem velar incessantemente a fim de que essa teologia se “desenvolva no Brasil e na América Latina, de modo homogêneo e não heterogêneo (sic) com relação à teologia de todos os tempos, em plena fidelidade à doutrina da Igreja...” (nº5).
Terceira condição: “A libertação é, antes de tudo, soteriológica (isto é, um aspecto da Salvação realizada por Jesus Cristo, Filho de Deus) e depois ético-social (ou ético-política)”. Por isso, não se pode reduzir o soteriológico ao social, ou ao político. “Antepor” o ético-social, ou político, ao soteriológico “é subverter e desnaturar a verdadeira libertação cristã” (nº 6).
Mas o fenômeno de troca de enfoque na Igreja aparece mais claramente em dois grandes momentos, a IV e a V Conferências do Episcopado, uma em Santo Domingo (1992) e a outra em Aparecida (2007).
Em ambas houve troca de método teológico. A respeito da IV Conferência um destacado teólogo acusou essa troca e muitos outros o secundaram. Ele lamentou o abandono das “analises da realidade... Com isso (a IV Conferência) se afasta do tradicional método de nossa pastoral: ver-julgar-agir”.
Quanto à V Conferência, muitos teólogos celebram o resgate do método “ver-julgar-agir”. Entretanto, não se dão conta, ou preferem silenciar, que o Documento final de Aparecida, dá a tal método outro sentido. Afirma textualmente que o “ver” significa que “vejamos a realidade à luz da Providência”, o “julgar”, que “julguemos segundo Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida” e o “agir”, que “atuemos a partir da Igreja” (nº19).
Pois bem, a troca de método representa troca de objeto. Método significa caminho para alcançar um objeto. Trocar o “caminho” significa trocar o objeto. No Discurso Inaugural de Aparecida, o Papa disse a respeito uma palavra contundente: “Se não conhecemos a Deus em Cristo e com Cristo, toda a realidade se torna um enigma indecifrável; não há caminho e, não havendo caminho, não há vida nem verdade” (DI 3).
No mesmo Discurso, Bento XVI, proclamou como objetivo da Igreja “a prioridade da fé e da vida em Cristo” e não a transformação das estruturas sociais, assim que “o método com o qual nós agimos na Igreja”, não é a análise da realidade mas, a “escuta da Palavra de Cristo no Espírito Santo”.
Julgo que com essas referências tenho acenado para as razões por que estaria em andamento uma troca de enfoque em nossa Igreja.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

A Igreja troca de enfoque
Achylle Alexio Rubin /achyllerubin@yahoo.com.br
Blog: achyllerubin.blogspot.com

Talvez seja muito interessante para os cristãos do Brasil e da América Latina tomarem consciência que a compreensão da vida cristã e da evangelização está mudando de enfoque. Está voltando a centrar-se numa perspectiva aguardada por muitos.
De uns quarenta anos para cá se tem sistematicamente doutrinado o povo cristão para crer que o objetivo da evangelização seria a “ação social”. Falava-se, sem mais nem menos, como se a missão da Igreja fosse a “transformação da sociedade”, a “mudança das estruturas sociais”. Ultimamente ainda escutei de bispos de grande projeção que “a missão nossa” seria “encontrar caminhos de se promover as famílias... de sair da sua pobreza, da sua miséria...”, “até com políticas públicas que temos de exigir do governo”, sem deixar de afirmar que “também é nossa grande tarefa: conduzir as pessoas a Jesus Cristo”. Um outro escreveu que “a proposta original da Igreja para conseguir a transformação que desejamos para a sociedade...” acontecerá “paralelamente” com “a renovação das pessoas”.
Os advérbios “também” e “paralelamente” traem, na minha percepção, uma séria ambigüidade e implicam, ademais, em perplexidade entre os cristãos. Todos sabemos que, na prática, há movimentos cristãos que se afanam em transformar as estruturas sociais e há outros que se aplicam com empenho na “renovação das pessoas”. Julgo que é chegada a hora de encontrar a boa relação entre ambos os grupos. A intenção existe, mas a concretização está se verificando penosa e lenta.
Registro aqui minha opinião sobre a causa desse desconforto na comunidade cristã. Observe-se por primeiro que o cristianismo, como a própria palavra indica, se refere à pessoa de Cristo. Ele como sua primeira “práxis”, veio nos gerar no amor até o extremo, filhos de Deus Pai.
Nessa fé acontece o que se chama de “vida em Cristo”. Isto é, filhos, participantes da natureza de Deus Pai (2Pd 1,4). Ora, natureza é vida, como acontece em nossa filiação natural. Recebemos a mesma vida de nossos pais. Somos uma repetição deles, até mesmo com os traços fisionômicos. Filhos de Deus e duplamente “imagem e semelhança de Deus” (Gen 1,26), por criação e por redenção.
A tendência de apontar o “social” como objetivo da Igreja, entrou com o paradigma “opção pelos pobres”. Sem delongar-me em explicações, subscrevo uma afirmação de Bento XVI. Disse ele aqui no Brasil: “a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica”. Isto quer dizer que tal opção deve ter como ponto de origem a “vida em Cristo”. Ela brota, “flui” espontaneamente da mesma vida. Filha da dessa vida, deve ostentar sua “fisionomia”.
Portanto, a “vida em Cristo” e a “ação social” não são duas coisas “paralelas”. Não são heterogêneas, mas homogêneas. Tomemos um desses livros de vidas de santos, como aquele de Dom Servilio Conti, e observemos só como todos os santos e santas na história da Igreja foram grandemente compassivos para com os pobres e doentes, e por eles deram tudo de si, socorrendo-os de inúmeras maneiras sem, contudo, ter feito “opção pelos pobres”. É que, o cuidado pelos pobres, brotava espontaneamente da “vida em Cristo” que neles se ternara adulta.
Há tempo venho me perguntando se a “revolução” social acontecida no Império Romano foi fruto da “ação social” dos cristãos, ou aconteceu por um processo de infiltração do “fermento” da vida cristã nas estruturas sociais do Império.
Encontro boa analogia nas árvores da cidade da Mata e dos arredores de Santa Maria, transformadas em pedra. Quando o Império Romano se deu conta, a mãe do imperador pagão era nada menos do que uma santa cristã, Santa Helena. Cristo havia dito que “o reino dos céus é semelhante ao fermento” que faz levedar toda a massa (Mt 13,33). Não disse que o reino era a massa, mas sim o fermento. Suspeito que muitos, hoje, se ocupam e gastam esforços pessoais e bens materiais com a “massa” das estruturas sociais e descuidam do fermento da “vida em Cristo”, capaz de levedar a “massa”. Felizmente a Igreja no Brasil está trocando o enfoque, da massa para o fermento...

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Campanha da Fraternidade "Defesa da vida"

Campanha da Fraternidade “Defesa da vida”

A Campanha da Fraternidade, promovida há muitos anos, pela CNBB (Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil) se ocupa da defesa da vida. Não vou escrever sobre o texto-base da referida Campanha, pois, ainda não tomei pleno conhecimento dele. Vou falar, porém, de algumas reflexões que venho fazendo. Limito-me ao tema do aborto, muito badalado na imprensa do mundo inteiro.
Vou comentar alguns argumentos que se fazem em favor do aborto:
1. Diz-se que o aborto é um problema de saúde. Neste caso poder-se-ia aprovar uma lei que ordene a eliminação dos contaminados por doenças contagiosas, como se faz com o gado contaminado pela aftosa. Por outro lado, se o aborto clandestino é problema de saúde, por que não fazer um esforço maior por assegurar às mulheres grávidas uma maior assistência, em lugar de apelar para o assassinato dos bebês?
Já os antigos diziam que, o feto, tenha alma ou não tenha, é sempre uma pessoa em formação que exige o máximo de respeito.
2. Um segundo argumento em favor do aborto consiste no apelo pelos “direitos sexuais e reprodutivos”, como também pela “autonomia das mulheres sobre o corpo”. Tais argumentos são altamente falaciosos porque desconhecem a mais elementar noção de ética social. Ninguém goza de tais direitos e de tal autonomia. Todos somos dependentes de realidades superiores a nossos interesses particulares, sobretudo quando se trata da vida dos outros. O desprezo desse princípio leva à barbárie. O Estado que admita tais direitos e autonomias se condena a si mesmo, perde sua autoridade. Que autoridade terá ele de me impedir, por exemplo, de eliminar meu vizinho porque, com os ruídos, ou os odores que emite, vem prejudicar minha saúde, ou meus interesses pessoais?
3. Um terceiro argumento consiste em dizer que um “Estado progressista”, hoje em dia, deverá admitir o aborto. Ao contrário, tal argumento não é progressista, é retrógrado, porque sobrecarrega o Estado de encargos com a velhice, em detrimento dos jovens. Outra proposta, neste caso, seria mais progressista sob todos os pontos de vista, econômico, cultural, científico e tudo mais. Isto é, proponha-se que deputados e senadores aprovem uma lei que elimine todos os cidadãos com 75, ou 80 anos, pois então a economia para o progresso do Estado seria grande em favor das crianças e jovens.
4. Em quarto lugar, chamo a atenção para a imensa hipocrisia de muitos. Quando, por exemplo, acontecem fatos, ou como aquele da criança morta arrastada por um carro, ou como o de uma criança atacada de um mal que exige tratamentos custosíssimo, as multidões se comovem. Entretanto, quando, impiedosamente, se matam pelo aborto milhões de crianças, muitos, além de nada sentirem, pleiteiam tal matança.
5. Concluo repetindo que se reflita sobre a proposta de se amparar as mulheres grávidas, a fim de que possam dar à luz com saúde e dignidade. O argumento do Estado em favor do aborto por motivo de saúde é falacioso porque, estando revestido de uma boa intenção, pretende justificar uma ação criminosa. Os fins nunca justificam os meios. Finalmente, será verdade que matando o bebê se conserva efetivamente a saúde das mulheres? Aos psicólogos a palavra...