domingo, 20 de abril de 2008

Coordenadas filosóficas sobre Direito

Coordenadas filosóficas sobre Direito

Esta obra do jurista Eugênio Antônio Pozzobon me estimula a escrever algumas coordenadas filosóficas sobre o tema do direito. O estímulo parte, tanto de um desejo expresso do autor, quanto das várias vezes que o mesmo me tem citado em sua obra.
A filosofia do direito ganha, hoje, muita importância por causa dos repetidos apelos por uma ética do comportamento social e político. A ética, com efeito, pertence ao domínio da filosofia e o direito está essencialmente vinculado à ética.
Em se tratando de filosofia, importa iniciar com uma palavra sobre a mesma. A variedade de correntes filosóficas, postula uma prévia consideração. Para simplificar a tarefa poderíamos apresentar duas delas que mais exercem influência nos debates sobre o direito: a filosofia realista e a positivista.
Os realistas, discípulos sobretudo do grande filósofo-teólogo, Tomás de Aquino, afirmam que a filosofia é uma ciência que se ocupa de conhecimentos do mundo real, adquiridos a partir da experiência. Tais conhecimentos, não permanecem limitados aos dados físicos da experiência sensível da realidade, mas, pelas manifestações sensíveis da mesma realidade, nós chegamos a entender que ela é mais do que suas aparências físicas. Por exemplo, vemos uma planta, sua cor, sua figura, seus produtos, flores e frutos, seu crescimento, etc. e entendemos que ela, com seu auto-mover-se organiza os elementos que escolhe da terra e da luz e se fazer crescer e produzir frutos. Tal “poder”, tal “energia” não se pode ver, mostrar, apalpar, medir, pesar, etc. Sua realidade é muito mais do que sua aparência. Transcende, ultrapassa o físico. Num sentido lato, é trans-físico, meta-físico. A dimensão física nós a vemos, a meta-física nós a entendemos.
A filosofia positivista, por sua vez, teve um grande impulso em nossos dias com o filósofo francês Augusto Comte (1798-1857). Na área do direito, creio não errar se digo que essa filosofia tem, hoje, uma preponderante influência.
Resumindo, esse filósofo construiu um amplo sistema explicativo da evolução social através dos tempos. Achou que a humanidade tem passado por três grandes fases de evolução. Num primeiro tempo teria predominado a era teológica ou fictícia, num segundo, a era metafísica ou abstrata, num terceiro, porém, estaríamos vivendo a era científica ou positiva.
De fato, Augusto Comte é considerado o fundador da sociologia, ciência positiva. Escreveu Curso de filosofia positiva onde afirma: “Em suma: ciência, logo previsão; previsão, logo ação...”. Salta à vista a semelhança com certa teologia destes últimos tempos fundamentada na sociologia, no método “ver-julgar-agir”, também ela considerando a metafísica como coisa abstrata.
Em conseqüência, o positivismo se caracteriza como uma filosofia cujo único método de conhecimento é o das ciências exatas, ou positivas. Essas ciências seriam o único caminho para resolver os problemas da humanidade. Inclusive, com essa base das leis sociais consideradas como divinas, Comte pretendeu fundar a religião do “amor à humanidade”. A adoração se deve à “divina” Humanidade.
Temos exemplos clássicos de endeusamento das ciências como resposta para todos os problemas humanos. Por exemplo, um retrato perfeito dessa “fé” encontramo-lo em Silvio Romero (1851-1914) que a Enciclopédia e Dicionário ilustrado Koogan/Houaiss caracteriza como “filósofo, sociólogo, polemista, crítico e historiador da literatura brasileira”. Escreve esse autor: “como a linguagem, como a mitologia, como a religião, a poesia perdeu todos os ares de mistério, depois que a ciência do dia, imparcial e segura, penetrou um pouco mais amplamente nos mistérios das origens. Este resultado foi devido à alta crítica histórica e filosófica, depois que o sopro das ciências naturais rejuvenesceu. A metafísica, com todo o seu histerismo, bem pouco contribuiu para ele. A poesia é um resultado da organização humana, nada tem de absoluto, nem de sobrenatural... A época de Darwin, Moleschout... e, naturalmente, de Comte, Mill e Spencer... Esses nomes exprimem a grande transformação das ciências da natureza, invadindo a esfera das ciências do homem... A popularização da ciência é um fenômeno dos últimos tempos e a melhor conquista da expulsão do sobrenatural. Tudo é relativo no universo e no homem, nada existe que faça medo. Para que, pois, o mistério?” (cf Contos do fim do século, 1878, V,VIII).
Tal “fé”, hoje, é contradita por todos os verdadeiros cientistas, mas ela foi a que levou os positivistas a excluir do direito as necessárias referências à natureza metafísica da pessoa, sem as quais não há o que todos buscam, a ética no comportamento social e político.
Ainda, para a filosofia do direito, importa recordar outra fonte do positivismo, o filósofo de Königsberg, Emmanuel Kant (1724-1804). Do ponto de vista do conhecimento da realidade também ele só admitiu, na esteira de David Hume, o método das ciências. Admite termos idéias de realidades não sensíveis, mas só idéias. Elas não correspondem com a realidade. Para ele, por isso, filosofar é pensar de acordo com um esquema de idéias. Em razão disso só admitiu o direito positivo, civil, assim que todo direito só se funda na lei positiva.
Essas colocações chamam em causa duas questões, levantadas pelos filósofos realistas, uma sobre a natureza do direito e a outra sobre o fundamento do direito. Ambas as questões pertencem ao objeto próprio da filosofia. Pois, pertence à filosofia investigar a natureza das coisas e o sentido delas, origem e fim.
Primeira questão: em que consiste o direito? Segundo a tabela das categorias, ou classes de realidades, elaborada, primeiro por Aristóteles em sua metafísica e depois acolhida por Tomás de Aquino, o direito é considerado na categoria da “relação”.
A relação se dá quando duas ou várias coisas se referem uma à outra, como que “ligadas” por um terceiro elemento, formando assim uma determinada ordem. Por exemplo, numa sala de aula há uma ordem de muitas coisas – alunos, mesas, cadeiras, quadro negro, mapas, etc. – todas ordenadas por referência a um terceiro, à cátedra. Temos aí uma ordem. Suponhamos não houvesse a cátedra e todas as coisas não estivessem a ela ordenadas, não se poderia dizer que se trata de uma sala de aula, mas, por hipótese, de um depósito. Na desordem as coisas não têm relação umas com as outras e, por isso, não há unidade, não há ordem.
Numa relação entram três componentes. No exemplo dado entram todos aqueles objetos, ordenados, voltados um para o outro, em referência à cátedra. Então se diz que essas diversas coisas são o objeto da relação, enquanto que a cátedra é o sujeito, e a posse, o fundamento. Constitui-se assim uma ordem.
No direito há o objeto que são realidades, o sujeito é quem as possui e o fundamento é a posse, a propriedade. As coisas se referem ao sujeito como sua propriedade. Trata-se de uma relação de posse. Se as realidades passam a ser posse, o sujeito passa a ser possuidor.
Torna-se alguém possuidor por atos diversos, como a ocupação de uma coisa sem dono, a doação, a compra, etc. Tais atos criam uma relação de possessão que implica um direito que exige ser reconhecido e respeitado.
Segundo questão. Onde então se funda esse reconhecimento, esse respeito? Funda-se primariamente na própria natureza humana, nos seus valores. O homem é um ser racional, tem consciência de si mesmo, é autoconsciente, é indivíduo autônomo, livre. Exerce “posse” de si mesmo, de seus valores humanos, é dono de si. Tem absoluto direito sobre si. Não pode ser “invadido” naquilo que é seu ser mais íntimo e também em tudo o que se refere à essa sua intimidade, os valores pessoais, e também suas posses. Nessa base houve a “Declaração dos direitos humanos” proclamada pela ONU. a fim de explicitar os direitos fundamentais da pessoa.
Hoje, o direito à vida biológica está em pauta com a discussão em torno do aborto e da eutanásia. Os que defendem essas práticas são os positivistas que crêem que o direito brota da lei positiva, civil, exarada pela autoridade civil e justificada pela manifestação da maior porcentagem de opiniões individuais. Entretanto, a pessoa humana tem direito à vida, mesmo quando ela não está ainda, ou não está mais de posse do exercício de sua razão, de sua consciência. Basta seja pessoa humana para exigir ser respeitada. Trata-se de um ser que, graças à consciência de si, se possui. A mais radical das posses, fundamento primeiro do direito, é o fato de ser pessoa, a posse de si mesmo. Desrespeitada esta, todo o direito rui em frangalhos.
A lei positiva permite muitos absurdos que estão acontecendo. Pela lei positiva todos os ditadores justificaram a violação dos direitos humanos. Temos abundância de exemplos de tais violações muito próximos de nós.
O fundamento do direito vai mais longe. Diz respeito ao sentido último da vida humana. O homem, ser racional, busca incansavelmente ser feliz. Está constantemente em busca daquilo que possa preencher seu desejo de felicidade. Não se contenta com bens limitados. É um ser insaciável. Sua ânsia de posse não tem limites. Isto revela busca constante da posse do bem maior, do “Sumo Bem”, como o chamou o grande filósofo, Aristóteles.
Em conseqüência, toda posse, todo direito sobre bens limitados, em definitivo, não o saciará nunca, não o fará feliz. É clássica a afirmação de Santo Agostinho: o homem estará sempre insatisfeito enquanto não repousar em Deus. Segue-se que os direitos sobre bens limitados somente encontrarão sentido se orientados, ordenados à ”conquista” do Sumo Bem, pois é isso que representa a insaciabilidade da pessoa. Segue-se ainda que os responsáveis primeiros pelo Bem Comum, as autoridades, não podem deixar de subordinar o direito, as leis, o direito positivo, ao Sumo Bem, sob pena de atropelar os direitos humanos, o direito à felicidade.
A autoridade que não subordinasse o direito ao Sumo Bem, orientando-o para a verdadeira felicidade dos cidadãos, não entende de humanidade e continuaria criando na sociedade um clima de insatisfação crescente. Não será com coisas materiais que se preencherá o desejo de ser feliz. O desenvolvimento econômico, a longo prazo, não trará a felicidade. Isso está visto nos sistemas liberal e socialista. Não está provado que as pessoas são mais felizes nesses sistemas. Bens materiais abundantes desligados do Sumo Bem, manifestam-se incapazes de realizar a felicidade.
Aqui chegamos à conclusão maior. Em última análise o direito se funda no transcendente, no Sumo Bem que os judeus, os cristãos e os muçulmanos o reconhecem como Deus.
Essas são algumas coordenadas da filosofia do direito que poderão encaminhar um diálogo frutuoso entre os juristas.

Achylle Alexio Rubin / achyllerubin@yahoo.com.br