quarta-feira, 18 de junho de 2008

As interpretações de Aparecida

As interpretações de Aparecida

Um destacado teólogo escreveu-me, em março último: Sinto que a teologia moderna (de hoje) é por demais “moderna” (alinhada ao imanentismo da modernidade). Há dificuldade nos teólogos e também, em parte nos Bispos (parte) de entender e apreciar, em sua natureza própria, a dimensão transcendente – espiritual – sobrenatural da fé. O que se escreve de Aparecida?! Cada um vê aí o que quer...
Não me parece difícil de vislumbrar duas óticas interpretativas do documento de Aparecida. Uma é a dos que o vêem à luz de Medellín e a outra a dos que o vêem à luz dos passos que a Igreja da América Latina tem dado, a partir, sobretudo de Santo Domingo. Já escrevi sobre isso dois artigos sob os títulos: A Igreja em correção de rota e Troca a Igreja de enfoque? (cf meu “blog”: achyllerubin.blogspot.com).
Os hermeneutas do enfoque de Medellín se valem das palavras chaves contidas no Documento, ver-julgar-agir e opção pelos pobres. Crêem poder justificar sua interpretação com essas palavras. Se esses intérpretes, entretanto, lessem o documento com maior atenção, iriam perceber que, tanto para o método ver-julgar-agir, como para a opção pelos pobres, o mesmo documento dá outro sentido. Não se parte mais simplesmente do “ver”. Parte-se do contemplar a Deus para que vejamos a realidade que nos circundo à luz de sua providência (nº19). Por sua vez a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica, segundo as próprias palavras do Papa (nº 392). Conclusão: sem a clara percepção do mistério de Deus, torna-se opaco também o desígnio amoroso e paternal de uma vida digna para todos os seres humanos (nº35).
Em conseqüência, não se parte do “ver”, pois, os cristãos precisam recomeçar a partir de Cristo, a partir da contemplação e de quem nos revelou em seu mistério a plenitude do cumprimento da vocação humana e de seu sentido (nº 41). Fica evidente que, se a opção pelos pobres está implícita na fé cristológica, então essa opção nasce de nossa fé em Jesus Cristo (nº 392) e não das causas detectadas pelas análises das conjunturas sociais, políticas e econômicas.
Lido o documento de Aparecida sob essa luz, ele ganha outro sentido, diverso daquele que muitos tentam ainda defender. Antes da realização da grande conferência, tenho respondido a alguém que me perguntava quais seriam as perspectivas do documento final: é possível e até provável, respondi, que o documento resulte de um certo compromisso entre diversas correntes de pensamento. As várias interpretações parecem apontar nessa direção.
Estou, aliás, bem curioso por saber qual a razão por que o artigo de frei Clodovis Boff, na REB de outubro do ano passado, foi colocado em último lugar, depois de vários outros intérpretes. Não será porque ele, sem fazer nomes, faz uma valiosa autocrítica da Teologia da Libertação e contesta o modo dos demais interpretarem Aparecida?
Considero, entretanto, que o máximo problema no seio da Igreja, e que comanda todas as interpretações, consiste naquele apontado acima: a dificuldade de se entender a vida sobrenatural. Ela se tornou indigesta, depois de ter sido involucrada no slogan do sobrenaturalismo. No entanto, reside ali a fronteira entre uma visão de autêntica vida cristã e uma visão de mera cultura cristã.
Escrevi um artigo sobre a visão cristã da história, comentando a celebre Carta a Diogneto, do século II (cf meu blog). Pois bem, o sobrenatural, tanto se refere ao indivíduo, como se refere à história e à sociedade. É verdade que Cristo “assumiu” a natureza humana, mas não a assumiu para deixá-la no nível em que se encontra de fato. Assumiu-a para elevá-la a um sumo, a uma culminância. O mesmo ele fez com a história, com a sociedade. Assumir, com efeito, significa elevar a um sumo, a um nível mais alto.
A filosofia da história há muito tempo está buscando um sentido para a história, uma compreensão dos acontecimentos que se sucedem. Sobre isso, porém, os filósofos divergem grandemente.
A teologia da história, entretanto, tem outra visão dos fatos e não há como titubear na busca de sua compreensão. Aqui os fatos históricos ganham um sentido novo e bem determinado. Não são produto de projetos humanos, orientação humana. São projetados e dirigidos pela divina Providência. A nós compete exercitar-nos, tanto na sensibilidade para perceber a intenção da Providência, quanto na docilidade para segui-la. Esse é o agir consoante o sentido teológico e sobrenatural da história.
Uma sociedade justa, entendida como objetivo da evangelização, distrai do verdadeiro sentido. Ela é alcançada como conseqüência de uma visão cristã da história e não como objetivo primeiro: buscai em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas em acréscimo (Mt 6, 33).
A interpretação de um escrito como o documento de Aparecida deve, portanto, obedecer a uma visão teológica, sobrenatural, do contrário desvia-se de seu verdadeiro sentido e se criam confusões.
Pe. Achylle A. Rubin / achyllerubin@yahoo.com.br