quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Catolicismo e meio ambiente

Catolicismo e meio ambiente

Introdução

Trata-se do tema Religiões e meio ambiente. Fui convidado a falar sobre Catolicismo e meio ambiente.
Como primeira tarefa, a título de introdução, vou começar por aclarar brevemente o próprio título desta palestra. Em primeiro lugar, sobre o catolicismo não seria necessário dizer muito. Suponho estar falando a um público razoavelmente informado a respeito. Não obstante chamo atenção para alguns aspetos.
A religião católica é uma religião cristã, por constituída de pessoas que crêem em Deus por Jesus Cristo, Filho de Deus. A fé em Jesus Cristo é amparada, por assim dizer, num tripé: a Bíblia, a comunidade de fé, e o magistério da Igreja.
O catolicismo reconhece a Bíblia como primeiro fundamento, tanto o Antigo como, sobretudo, o Novo Testamento. A Bíblia é também caracterizada como Sagrada Escritura. O catolicismo a reconhece como um livro diferente, um livro que contém a revelação por parte de Deus de suas obras e de suas intenções a respeito do homem. Esse livro é por isso chamado de “Palavra de Deus”.
É na verdade uma palavra original porque não trata apenas da palavra como símbolo de um saber intelectual, mas trata da manifestação, por assim dizer do esforço de Deus por desejar estabelecer relações de intimidade com os homens. Não é uma ciência, no sentido moderno, mas nos manifesta a intenção de pessoas que vêm ao encontro dos homens. Daí que os dois Testamentos são ainda chamados de Antiga e Nova Aliança, pois aliança diz respeito a uma relação entre pessoas.
O Apóstolo e evangelista João, no prólogo de seu Evangelho, chamou Jesus Cristo de “Verbo”, quer dizer, Palavra. Palavra de Deus indica aqui, por eminência, o próprio Jesus Cristo. Portanto, “palavra” designa a pessoa de Jesus Cristo, que veio para nos mostrar o Pai. Como toda palavra manifesta um sentido, um conceito, é a imagem da coisa em nossa mente, assim também Jesus, o Verbo, é imagem perfeita do Pai. Foi por isso que, quando um Apóstolo perguntou a Jesus: “Mostra-no o Pai”, Jesus respondeu: “Aquele que me viu, viu também o Pai” (Jo 14,9).
Sendo pessoa, a palavra representa uma linguagem original, cujo sentido é captado por outro método diferente daquele das ciências. A hermenêutica neste caso tem uma importância relativa. Necessitamos de uma outra luz para descobrirmos seu significado pleno. Chama-se de luz da fé que ilumina a mente. Não só luz mas também “calor”, pois aquece o coração. Isso é coisa própria do amor, da intimidade de pessoas. Sendo que se trata de intimidade de pessoas, a Palavra de Deus se torna um acontecimento, uma vivência.
Há incontáveis exemplos, antigos e atuais, desse acontecer na pessoa de quem tem fé. São Justino, filósofo pagão, apenas 150 anos depois de Cristo, converteu-se ao cristianismo, ao ler a Bíblia, graças ao conselho de um velhinho misterioso, que lhe falou dos profetas que “haviam anunciado somente a verdade”. Justino tomou a Bíblia e nos conta: “A minha alma, de repente ficou iluminada por um fogo como se fora a luz do meio dia. Senti-me enamorado dos profetas e das pessoas amigas de Cristo. Pensei e repensei em todas aquelas palavras e entendi: entendi que esta é a única verdadeira e útil filosofia. É assim que sou filósofo. Gostaria, aliás, que todos experimentassem o que eu sinto e que não se afastassem da doutrina do Salvador”[1].
Outro exemplo mais caseiro é o do Sr. João Luiz Pozzobon. A certa altura de suas caminhadas por muitas estradas, visitando famílias e escolas, rezando o rosário e dando catequese, não se conteve e exclamou na minha presença: “Se me encontrarem morto na beira da estrada, saibam que morri de alegria!”. A alegria provinha da presença divina em seu coração.
Exemplos como esses ilustram o segundo “pé” sobre o qual se apóia a Igreja Católica que é a vida de fé da comunidade. Quando através dos tempos toda a comunidade vive da fé em algum elemento relacionado com Deus, admite-se tal acontecimento como coisa verdadeira.
O terceiro pé sobre o qual se fundamenta o catolicismo reside no chamado “Magistério da Igreja”. Funda-se na incumbência dada por Cristo a Pedro e aos Apóstolos com Pedro, de serem os garantes da unidade da vida dos discípulos e também os testemunhas na confirmação da fé. Encontramos tal incumbência em todos os quatro Evangelhos. No de Mateus basta recordar o episódio da confissão de Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo! Jesus então lhe disse: ‘... eu te declaro: tu es Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja...eu te darei as chaves do reino dos céus, e tudo o que desligares na terra, será desligado nos céus” (Mt 16,16s; cf 18,18; 28,18).
Na última ceia, Jesus incumbe a Pedro de confirmar os demais: “... eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; e tu, por tua vez, confirma os teus irmãos” (Lc 22,32). Finalmente, por três vezes, Jesus pergunta a Pedro se o ama e por três vezes lhe diz: “apascenta os meus cordeiros” (Jo 21,15s). Apascentar é uma imagem para dizer convoca, vela, defenda... como faz o pastor.
O outro conceito que está em nosso título é “Meio Ambiente”. Aqui também não será preciso dizer muito porque dele se fala em toda parte, nas escolas e em todos os meios de comunicação. A própria palavra indica o sentido. Trata-se do lugar e dos elementos que compõem o habitat dos seres vivos e, sobretudo, dos humanos. O Aurélio o define como “lugar onde se vive, com suas características e condicionamentos geofísicos”. Compõe-se de muitos fatores: a terra, a água, o ar, a luz, a flora, a fauna, os resíduos da era tecnológica e sua influência sobre o meio ambiente. Portanto, tudo o que entra a fazer parte do “lugar onde se vive”.
Mas o conceito de meio ambiente engloba ainda, e sobretudo, o equilíbrio entre esses fatores de sorte a fazer com que esse lugar se torne adequado para a vida. Pelo meio ambiente iniciamos a consideração.

1. Deus criou o meio ambiente

Todo e qualquer tema que o catolicismo como tal tem em vista, o trata com uma ciência própria, que é a teologia. A teologia trata de todo conhecimento que Deus nos tem revelado. E, se é revelado, isto significa que, num primeiro momento, representa um conhecimento que vem de Deus a nosso respeito e a respeito do universo. Só num segundo momento torna-se um conhecimento nosso, uma ciência. Assim que nossa ciência teológica baseia-se sobre fatos e palavras reveladas. É um conhecimento que se encontra na Bíblia, na fé da comunidade cristã e no magistério da Igreja, como vimos.
O que então nos dizem essas três fontes acerca do “meio ambiente”? A primeira delas é a Sagrada Escritura.
Pois bem, desde suas primeiras páginas ela nos fala, nada menos do que do meio ambiente. Isto é, os dois primeiros capítulos tratam da criação do meio ambiente para o homem. Justamente, toda a Bíblia começa assim: “No princípio, Deus criou os céus e a terra” (Gen 1,1). Em seguida especifica. Cria a luz; separa as águas da terra para fazê-la habitável; cria os vegetais, os astros, os peixes e animais que habitam nas águas, todo tipo de animais terrestres. Diz textualmente: “Produza a terra seres vivos segundo a sua espécie...” (Gen 1,24). Terminado de criar todo esse ambiente, a Bíblia diz: “E Deus viu que isto era bom”.
Preparado o ambiente, Deus criou para habitá-lo o homem e a mulher e os criou “à sua imagem e semelhança” (Gen 1,27). E lhes entregou tudo como um dom precioso: “Eis que eu vos dou toda a erva..., todas as árvores..., todos os animais..., todas as aves..., e tudo em que haja sopro de vida...” (Gen 1,29s). Depois desse dom, terminada a obra da criação, a Bíblia completa: “Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom” (Gen 1,31).
Portanto, a Sagrada Escritura tem uma visão positiva a respeito do meio ambiente. Alguns acharam que há nessa descrição um elemento negativo, referindo-se ao versículo 28 do capítulo primeiro, em que Deus diz: “...enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais...”. Aqui não podemos deixar de levar em conta que as palavras são meros símbolos que simbolizam significados que variam conforme as diversas línguas, as culturas diversas e as diversas épocas. A palavra “dominar” hoje adquiriu significados negativos. Foi-lhe atribuído o sentido de arbítrio sobre pessoas e coisas. Entretanto ela deriva de dominus, em latim, que significa senhor e não tem necessariamente o significado negativo de patrão despótico. Ademais, logo adiante a Bíblia diz que Deus doou tudo ao homem “para ver como o homem os havia de chamar... e o homem pôs nomes a todos os animais, a todas as aves...” (Gen 2,19-20). Ora, pôr nome é um gesto de carinho e de paternidade e não de dominação, no sentido moderno. A dominação veio após.
Depois do episódio do dilúvio, Deus manifesta ainda seu apreço pela natureza, pelo meio ambiente. Estabelece uma aliança “convosco e com vossa posteridade, assim como com todos os seres vivos..., as aves, os animais domésticos, todos os animais selvagens...” (Gen 9,8s).

2. Donde veio a dominação e o desperdício da natureza?

Na época em que a Escritura Sagrada foi escrita, fazia-se a mesma pergunta angustiante que hoje nos fazemos: Se Deus disse que “tudo era muito bom”, se Deus é bom, donde veio a maldade humana, que reside em nós e tem – hoje, todos o sabemos – tanta repercussão destruidora de nós mesmos e do meio ambiente em que vivemos?
Há em nós tendências para o mal, para a destruição. Facilmente satisfazemos tais tendências em detrimento da harmonia de nosso ser, da sociedade e da natureza, na ilusão de encontrarmos realização pessoal.
A resposta da Bíblia está descrita no capítulo três do Gênesis. Com uma alegoria, esse capítulo nos descreve um acontecimento de grande e universal importância. Aí encontramos certa explicação para o problema do mal no mundo. Isto é, descreve-se a origem da maldade humana. Onde reside tal origem?
Hoje, por exemplo, os comentaristas, diante da crise financeira, estão de acordo em afirmar que a origem dela é a “ganância”. Mas, donde veio a ganância? Outros generalizam mais, falando do egoísmo que mora em nós. E o egoísmo donde veio?
Precisamos olhar para a referida alegoria para ver a origem do mal. O maligno, no símbolo da serpente, explorou exatamente nossa natureza de seres dotados de espírito que conhecem e amam e que aspiram insaciavelmente o infinito, na posse de Deus. Por criação somos um vazio, vazio de Deus.
Até Jean Paul Sartre, filósofo contemporâneo, reconheceu essa nossa realidade insaciável, esse vazio de Deus, mas como ateu contumaz, declarou que esse anseio não tem finalização, não tem sentido, já que Deus não existe. Em razão disso definiu o homem como “uma paixão inútil”.
Foi exatamente o que o tentador explorou: o anseio por preencher o vazio, propondo ao homem separar-se de Deus, pois, unido a ele estaria de olhos fechados, sem rumo, enquanto que separados dele “vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal” (Gen 3,1-5).
Desde então, como por um processo genético, o afastamento de Deus, em lugar de abrir os olhos, produziu a verdadeira cegueira. Desde então vivemos da ilusão de nossos “olhos” de enchermos o vazio de Deus com sucedâneos, como são os prazeres, as riquezas, a cobiça, o orgulho, a dominação.
O grande filósofo pagão, Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, escreve que o néscio se ilude “colocando a felicidade nos prazeres, nas riquezas e nas honras. O sábio, porém, coloca a felicidade no Sumo Bem”. Essa “ignorância” é o que desorganiza nossa natureza e também o mundo ao nosso redor.
O primeiro desequilíbrio está em nosso próprio ser e, a seguir, o transferimos ao nosso meio ambiente. Não que os prazeres, as riquezas, a ambição etc. sejam maus. O são desde que se sobreponham às outras dimensões de nosso ser. Se julgamos, com efeito, que a crise financeira atual brota da “ganância”, isto significa que se pretende ser como Deus, acima do bem e do mal, encaminhando tudo em proveito do “ego”, ainda que tenha de dilapidar a natureza.
Eis a causa do desperdício do meio ambiente: já que não enchemos o vazio de Deus com o objeto próprio, que é Deus, tentamos insaciavelmente preenchê-lo com sucedâneos, com ersatz. E nessa corrida não há limites. Somos insaciáveis porque o desejo é de infinito.

3. O resgate do meio ambiente

A Bíblia em sua divisão clássica compõe-se de duas partes, o Antigo e o Novo Testamento. Mas, para efeito do que estamos tratando, poder-se-ia dividi-la como primeira parte, os dois primeiros capítulos, os da criação e os da queda com suas conseqüências e como segunda parte todos os demais capítulos.
O meio ambiente já não será mais tranqüilo e pacífico. Deus disse a Adão: ... “maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento... Ela te produzirá espinhos e abrolhos... Comerás o teu pão com o suor do teu rosto...” (Gen 3, 17-19). Isso quer dizer que rebelado o homem, toda a natureza, ambiente se tornou adversa, não por sua causa, mas por causa do homem. Antes a natureza era jardim do Éden, depois, se tornou o “vale de lágrimas”.
A partir daí, entretanto, a natureza toda, os homens, em primeiro lugar, não foram abandonados. Deus começa a falar em uma aliança com o homem e com a natureza, sobretudo a partir do capitulo 12 do livro do Gênesis, quando escolhe Abraão e lhe diz: “Faço aliança contigo e com tua posteridade, uma aliança eterna, de geração em geração, para que eu seja o teu Deus e o Deus de tua posteridade” (Gen 17,7).
Toda a Bíblia passa a representar o esforço, por assim dizer, que Deus faz para resgatar o homem e, com o homem, a natureza, o meio ambiente. Quem melhor expressou isso, com palavras certas, foi São Paulo. Escreve ele: ... “A criação foi sujeita à vaidade – não voluntariamente, mas por vontade daquele que a sujeitou – todavia, com a esperança de ser também ela libertada do cativeiro da corrupção, para participar da gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Pois sabemos que toda a criação geme e sofre como que dores de parto até ao presente dia. Não só ela, mas também nós...” (Rom 8,19-22).
A natureza toda, portanto, assim como participou da escravidão do pecado, traduzida em depredação, também esteve destinada a participar da “liberdade dos filhos de Deus”. Essa liberdade refere-se ao fato inimaginável, impensável, surpreendente, do Filho de Deus que se faz natureza, que assume uma natureza humana, vive ligado intimamente à natureza, à terra, à água, aos montes, ao lago, às aves, aos animais, às plantas, à videira, à oliveira, aos trigais, às flores, aos lírios do campo, enfim a toda a natureza, como meio ambiente do homem.
Ao assumir a natureza humana, assume junto todo o meio ambiente, a morada por ele próprio preparada para o homem. A decadência do homem, como vimos, significou a decadência de seu meio ambiente. Pois, a natureza toda está ordenada ao seu Criador, mediante a criatura racional. Esta criatura, dotada de consciência, tem por fim exercer a mediação de toda a natureza desprovida de razão, de consciência.
Assim, a elevação do homem, o enobrecimento do homem vai representar a elevação, o enobrecimento do meio ambiente. Foi por isso que desde os primeiros cristãos se tem dito que Deus se fez homem a fim de fazer dos homens deuses. Agora a proposta do tentador, insinuando a Eva que o afastamento de Deus resultaria em sermos deuses, foi realizada, não por obra e graça do próprio homem, mas por Jesus Cristo. Da mesma forma poderíamos dizer que Deus se faz natureza a fim de fazer da natureza coisa divina. Ele não desdenha em nada do homem como da natureza, do meio ambiente. Ao contrário, ao resgatar o homem, resgata com ele tudo o mais.
Foi isso que nos ensinou São Paulo na carta aos Romanos, há pouco citada. Toda a criação, “geme e sofre como que dores de parto até o presente dia, para participar da gloriosa liberdade dos filhos de Deus”. Assim que, o resgate do homem vai significar o resgate do meio ambiente. Nesse clima não há lugar para a depredação.

4. A Igreja Católica e o meio ambiente

Estou falando do catolicismo e do meio ambiente. Ora o catolicismo é representado pela instituição Igreja Católica. Cremos que Jesus Cristo confiou a Pedro e aos Apóstolos e seus sucessores o chamado “depósito da fé”, recordado na introdução.
Como instituição cabe perguntar-nos não só sobre a opinião das autoridades eclesiásticas a respeito do meio ambiente, como também a opinião e prática entre os membros dessa instituição.
Em primeiro lugar, sobre a opinião das autoridades basta que citemos as palavras do Papa João Paulo II proferidas na Zona Austral do Chile, Punta Arenas, no dia 04 de abril de 1987:
“Desde o Cone Sul do Continente Americano e frente aos ilimitados espaços da Antártica, lanço um chamado a todos os responsáveis de nosso planeta para proteger e conservar a natureza criada por Deus: não permitamos que nosso mundo seja uma terra cada vez mais degradada e degradante”[2].
Bento XVI igualmente, “em seu discurso aos jovens, no Estádio do Pacaembu, inicio de maio do ano passado, chamou a atenção sobre a ‘devastação ambiental da Amazônia’... e pediu aos jovens ‘um maior compromisso nos mais diversos espaços de ação’”[3].
O Catecismo oficial da Igreja Católica (Cat.), publicado em 1992, traz longo capítulo sobre a criação. Depois de falar da criação, toda feita para o homem, cita um sermão de São Pedro Crisólogo, do século V: “Quem é pois o ser que vai vir à existência cercado de tal consideração? É o homem... é para ele que existem o céu e a terra e o mar e a totalidade da criação” (Cat.nº 358).
Portanto, por dois motivos Deus tudo criou, para a manifestação de sua glória e para nossa felicidade. Ora, tendo “todas as criaturas o mesmo Criador e de todas estarem ordenadas para sua glória... existe uma solidariedade entre todas elas” (Cat. Nº 344). Tal solidariedade fundamenta a admiração e o respeito para com todo nosso meio ambiente.
A estas alturas o catecismo cita um trecho da poesia de São Francisco de Assis, O Cântico do irmão Sol:
Louvado sejas, meu Senhor,
Com todas as tuas criaturas,
Especialmente o senhor irmão Sol,
Que clareia o dia
E com sua luz nos alumia

E ele é belo e radiante
Com grande esplendor
De ti, Altíssimo, é a imagem.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Lua e as Estrelas,
Que no céu formaste claras
E preciosas e belas.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Vento,
Pelo ar, ou nublado,
Ou sereno, e todo o tempo,
Pelo qual às tuas criaturas dás sustento.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã água.
Que é mui útil e humilde
E preciosa e casta...

Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão fogo
Pelo qual iluminas a noite
E ele é belo e jucundo
E vigoroso e forte.

Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã, a mãe Terra,
Que nos sustenta e governa,
E produz frutos diversos
E coloridas flores e ervas...

Louvai e bendizei a meu Senhor,
E dai-lhe graças,
E servi-o com grande humildade[4]

Não podemos estranhar que São Francisco de Assis seja considerado o patrono da ecologia, do meio ambiente. Seus biógrafos descrevem quanto ele respeitava a natureza e quanto sofria quando se maltratavam animais ou vegetais[5].
Encontramos sobre o meio ambiente orientações da Igreja Católica de grande valor e muito atuais no Documento de Aparecida (DA), texto conclusivo da V Conferência do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. As cinco Conferências do Episcopado realizadas desde 1955 foram de grande importância para orientar a ação pastoral da Igreja em nossas regiões, mas também foram acolhidas e aprovados por toda a Igreja.
Segundo esse documento, o meio ambiente é tratado à luz de dois fatos de extraordinária importância, a criação e a redenção.
Pela criação valoriza-se a natureza toda como nosso ‘hábitat’ por Deus mesmo preparado para nós, como vimos de início. Pois, “o Deus da vida encomendou ao ser humano sua obra criadora para que ‘a cultivasse e a guardasse’” (DA, nº 470). Em conseqüência, “o homem e a mulher são convocados a viver em comunhão com Ele, em comunhão entre si e com toda a criação” (ib). Por isso, citando São Francisco de Assis, afirma “’nossa irmã e mãe terra’ é nossa casa comum e o lugar da aliança de Deus com os seres humanos e com toda a criação”. Por isso, “desatender as mútuas relações e o equilíbrio que o próprio Deus estabeleceu entre as realidades criadas, é uma ofensa ao Criador...” (DA nº125).
Pela redenção de Jesus Cristo, os seres humanos e toda a natureza foram “assumidos”, quer dizer elevados a um sumo, sendo Cristo a cabeça dos humanos e por eles de toda a natureza. São Paulo nos fala dessa relação ascendente para Cristo. Fala-nos do “desígnio” do Pai de “reunir em Cristo todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra” (Ef 1,10). Em conseqüência escreve: “...tudo é vosso. Mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1Cor 22-23).
Nessa dupla perspectiva, da criação e da redenção, o catolicismo entende o respeito pelo meio ambiente, pois que tudo participa da divindade de Cristo.
O DA passa a denunciar que tal respeito não acontece. Escrevendo que “a América Latina é o Continente que possui uma das maiores biodiversidades do planeta e uma rica sócio-diversidade”, constata que “a natureza foi e continua sendo agredida; a terra foi depredada; as águas estão sendo tratadas como se fossem mercadoria negociável pelas empresas” tanto nacionais como internacionais. Referindo-se à Amazônia, diz que “a crescente agressão ao meio ambiente pode servir de pretexto para a proposta de internacionalização da Amazônia”. Segue afirmando que “constatamos o retrocesso das geleiras em todo o mundo: o degelo do Ártico, cujo impacto já está se vendo na flora e na fauna desse ecossistema; também o aquecimento global se faz sentir no estrondoso crepitar dos blocos de gelo ártico que reduzem a cobertura glacial do Continente e que regula o clima do mundo” (DA nº 83s).
Em particular, diz o documento que “a riqueza natural da América Latina e do Caribe experimenta hoje uma exploração irracional que vai deixando um rastro de dilapidação, inclusive de morte por toda a nossa região...” (DA nº473).
Em vista de tudo isso, o documento de Aparecida exorta a todos que “é necessário dar especial importância à mais grave destruição em curso da ecologia humana” (DA nº472). Em seguida apresenta-nos cinco ações práticas para todos os membros da Igreja, maximamente para a Igreja na América Latina e no Caribe:
a) “Evangelizar” sobre o grande dom da criação ao homem, “educando-o para um estilo de vida de sobriedade e austeridade solidária”.
b) Apoiar, sobretudo “as populações mais frágeis e ameaçadas pelo desenvolvimento predatório” no esforço por melhor “distribuição da terra, das águas e dos espaços urbanos”.
c) “Procurar um modelo de desenvolvimento alternativo...baseado numa ética” fundamentada no Evangelho.
d) Empenhar-se por “políticas públicas” de “proteção, conservação e restauração da natureza...”.
e) Buscar “medidas de monitoramento e controle social sobre a aplicação dos padrões ambientais...” (DA nº 463).

Nesse documento da V Conferência do Episcopado da América Latina e do Caribe, temos, portanto, preciosos elementos que revelam quanto a Igreja Católica está preocupada com o meio ambiente, criado para o hábitat, a morada dos homens. É, portanto, em função do homem e de seu destino eterno que ela manifesta tanta preocupação, pois se trata do habitat por Deus mesmo criado para nós.

Conclusão

Felicito os promotores destas “Reflexões” sobre “Religiões e Meio Ambiente”, pois, as religiões, sobretudo as que se fundam na Bíblia, têm um grande apelo voltado ao amor por nossa casa comum onde vivemos. É a casa que Deus nosso Pai preparou com muito carinho para nós. Devemos para isso unir esforços.
Não há dúvida, houve um grande progresso na consciência ecológica de todos. Recordo que eu mesmo, na minha infância, não conseguia entender as restrições das primeiras leis de proteção aos animais e às plantas. Perguntava-me por que tais restrições se tudo me parecia tão abundante.
Falei do carinho com que Deus preparou nossa habitação. A sensibilidade pela natureza está muito relacionada com a experiência de um grande amor.
Penso que o amor é capaz de enriquecer nosso sentir pela natureza, como aconteceu com São Francisco de Assis e muitíssimos outros.
Uma coisa aliás controversa, um grande amor nos faz sentir-nos em comunhão com a natureza. Pode ser razoavelmente plausível o que muitos acreditam que podemos ter experiências chamadas de holísticas, oceânicas, de trans-consciência, uma espécie da identificação com o Cosmos. Basta citar os escritos de Fridjof Capra.
Acontece em algumas religiões, como na católica, uma espécie de identificação no amor com toda a criação. Poderia citar muitos exemplos. Permito-me narrar apenas um: Vive ainda uma mulher russa, Tatiana Guritcheva, professora de filosofia marxista, insatisfeita com sua filosofia e muito inquieta, por encontrar um sentido para a vida. Buscou todo tipo de experiências na linha do sexo e das drogas. Nessa busca terminou aderindo à ioga. Decorou vários mantras, entre eles até o Pai Nosso. No livro por ela escrito intitulado, Falar de Deus é perigoso, ela nos narra:

“Eis que um dia (tinha vinte e seis anos, então), eu caminhava por um campo, dizendo as palavras do Pai Nosso. Depois de tê-lo repetido umas seis vezes, sem ter a menor fé na existência de um ‘Pai celeste’, recebi subitamente a resposta. A coisa mais inesperada, mais inimaginável me aconteceu. Tornou-se claro para mim que Ele existia. Não o deus anônimo dos iogues, mas o Pai dos Céus, cheio de amor. Ele me amava e amava todas as coisas que me estavam ao redor. Tudo ficou tão claro para mim, como se estivéssemos no primeiro dia da Criação. A pobre paisagem em torno se iluminou de uma alegria incomum, cada planta, cada folha parecia fremir de júbilo. Dir-se-ia que o mundo inteiro acabava de sair de suas mãos extravasantes de amor. Naquele momento, eu nasci de novo”.
Depois dessa virada em sua vida ela foi expulsa da Rússia e, após viajar pelo mundo dando palestras, fundou um escritório na Alemanha, a fim de angariar fundos para as crianças abandonadas, sobretudo da África.
[1] Diálogus, 8; cf Cola, Silvano, Operários da Primeira Hora, Cidade Nova Editora, tradução Pepe, Enrico, 2ª ed. 1987, 14.
[2] Citado no Documento de Aparecida, nº 87.
[3] Ib nº 85.
[4] (Cat. 344; cf São Francisco de Assis, escritos e biografias, Vozes 1996, p.70s).
[5] Cf Inácio Larrañaga, O Irmão de Assis, Paulinas, 1980, p 102s.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Visão cristã do Social

Pastilha 86
A visão cristã do social

Na “pastilha” anterior escrevi sobre a noção de “realidade” no Documento de Aparecida. Volto ao mesmo assunto por achá-lo de muita importância.
Explicito aqui a me referir à “realidade” social, como se passou a entender abusivamente essa palavra. Por isso a coloquei entre aspas.
Há pouco tempo escrevi também sobre a visão cristã da história. Assim como a história também o social se enquadra na mesma categoria, a categoria do mistério de Cristo. Ele veio para “reunir em Cristo todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra” (Ef 1,10). Aqui, o social, como a história, ganha novo sentido, novo significado.
Não se trata por isso de qualquer balela. Sob o prisma da encarnação do Verbo, história e social, vistos na perspectiva humano-sociológica, se esfumam diante do sentido novo, transcendente, infinito de “todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra”. Arriscamo-nos e ficar girando como mariposas em torno de uma débil luz de vela num quarto escuro, e não percebermos o brilho do sol.
O Documento de Aparecida, desde sua introdução, nos aponta para essa grande luz que transcende o sociológico. Encontramos aí, com muita clareza: ... o que nos define não são as circunstâncias dramáticas da vida, nem os desafios da sociedade e as tarefas que devemos empreender, mas acima de tudo o amor recebido do Pai, graças a Jesus Cristo, pela unção do Espírito Santo. Acrescenta o documento que essa definição é para a Conferência dos Bispos de uma “prioridade fundamental” (nº 14). Antes disso, com efeito, vêm citadas as palavras de Bento XVI, fazendo eco a João Paulo II: não tenham medo de Cristo! Ele não tira nada e dá tudo Quem se dá a ele, recebe cem por um. Sim, abram, abram de par em par as portas a Cristo e encontrarão a verdadeira vida” (nº’5).
Onde está a dificuldade? Está na cultura moderna, formada por filosofias, assumidas por tendências teológicas, traduzidas e vulgarizadas pela mídia. E o que há de mais sério nessas ciências? Elas pretendem explicar tudo por aquilo que na filosofia clássica se tem chamado de “potência”, em oposição ao “ato”. Chama-se de potência o componente de qualquer realidade que é feito ser por outro componente ativo, dinâmico.
Toda realidade múltipla é composta desses dois componentes. Ambos formam a realidade. Nenhum deles é realidade a não ser quando unido ao outro. Um exige o outro. A relação mútua é constitutivo essencial de ambos. Temos exemplos abundantes. Uma planta é composta da potencialidade da madeira e do poder de atualização do componente vegetal. Assim nós também somos um corpo orgânico potencial feito atual pela racionalidade.
Que tem a ver com o nosso caso essa consideração? Acontece que, hoje, a mentalidade, a cultura, privilegia os componentes potenciais. Assim, na teologia se privilegia o humano. Em Jesus Cristo se acentua de tal sorte o humano que o divino passa facilmente à categoria de secundário, ou, como se reconheceu, passa à categoria de “suposto”. Acentua-se o histórico e o social ao nível do humano e sociológico, em detrimento da visão cristã dessas dimensões. Tomam-se esses conceitos despidos do sentido divino que, depois de Cristo, passaram a possuir.
O fato de privilegiar a potência redunda para muitos teólogos e agentes de pastoral, em querer fundamentar tudo partindo “de baixo para cima”. Entretanto, assim como a criação, também a revelação, não aconteceram dessa forma. Elas foram inesperada surpresa, pura gratuidade, fruto de uma escolha amorosa de Deus.
É verdade que, tomada essa amorosa iniciativa, Deus pôs à prova os destinatários, como convém a seres livres. Os primeiros pais foram provados por um livre ato de aceitação e correspondência. Sabemos do resultado descrito no livro do Gênesis. A redenção por Jesus Cristo também foi posta à prova de aceitação e correspondência na pessoa de Maria. Daí que os Santos Padres nos ensinaram que, assim como por um homem e uma mulher nos veio a perdição, do mesmo modo, por um homem, Jesus Cristo e por uma mulher, Maria, nos veio a salvação.
Desde então os cristãos estiveram a braços com a enorme questão: como entender melhor a ação livre de Deus sobre nós e a livre correspondência de nossa parte? Ou, como se relacionam graça e natureza, sobrenatural e natural?
A história parece mostrar que acontece um movimento pendular entre o sobrenaturalismo e o naturalismo. O natural e o sobrenatural são dois escolhos, Cila e Caribde, que formam uma estreita passagem pela qual muitas teologias não passam incólumes. Isso acontece em épocas como a nossa em que se rejeitou a metafísica, única ciência que poderia nos fornecer o paradigma da passagem por entre esses dois escolhos.
Os filósofos sociais discutiram muito sobre o sentido do social e não chegaram a um consenso. Os teólogos, chamados a se moverem ao nível do sobrenatural, onde o natural, o imanente, nada perde e ao contrário é transfigurado, não podem ficar enredados no trânsito da imanência. São solicitados a levantar os olhos às alturas em que Cristo, assumindo a natureza a elevou. Por isso, nos exortam os últimos Papas: não tenham medo de Cristo! Ele não tira nada e dá tudo. Em verdade, assim como assume nossa humanidade, com ela assume também a história humana e o social. Foi para exemplificar que chamei atenção para o caso do império romano. Não consta que os cristãos dos primeiros séculos desenvolveram uma vasta ação social para fazer ruir o império. Ele foi penetrado por infiltração do fermento que é o Reino de Deus (Mt 13,33). Jesus não disse que o Reino é a massa, mas disse que o Reino é o fermento. O fermento transforma a massa compenetrando-a e fazendo-a levedar.