segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Pastoral-política

Caríssimo Cardeal Dom Raymundo Damasceno Assis
Sou padre da Sociedade do Apostolado Católico, (Palotino) com 54 anos no trabalho de acompanhar seminaristas em nossos cursos de Filosofia e Teologia. Reconheço-me bastante crítico frente a teologia e pastoral de nossa Igreja católico no Brasil. Pois bem, lendo a carta que o Sr. escreveu sobre a Campanha da Fraternidade, chamou-me muito a atenção aquilo que considero como o problema de base para a compreensão da evangelização. Trata-se da relação do social com a fé. Santo Tomás nos elaborou critérios seguros para aclarar esse e outros problemas semelhantes. Entretanto, muitos teólogos se deixaram levar pela camapanha de difamação desse grande teólogo e por isso essa relação se tornou dificil de ser entendida e na prática mal aplicada.

Considero que o próprio Evangelho nos dá dicas para entendermos o problema. "Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus..." (Mt 6,33; Lc 12,31). As comparações nos Evangelhos ilustram o que se deve buscar em primeiro lugar. Por exemplo, as comparações do fermento e da seiva. Estamos correndo o risco, em nossa pastoral, de acentuarmos tanto a massa e perdermos de vista o fermento, ou a seiva.

O professor filósofo, Bochenski, na Universidade de Fribourg/Suiça, nos repetia: toda a tendência da filosofia e teologia, hoje, é de acentuar o que a filosofia clássica chama de "potência" em detrimento do "ato". O social representa a "potência", a fé representa o "ato". E, na mesma filosofia clássica, se acentua que o ser se entende pelo ato e não pela potência. Frei Cladovis Boff, no famoso artigo no último nº da REB, de 2007, apela para os fundamentos e critica a Teologia da LIbertação que teria buscado fundar-se nos pobres, esquecendo-se com isto de Cristo como fundamento. Subsituimos, diz ele, Jesus Cristo pelo pobre. Corremos o risco de colocar o social no lugar de Jesus Cristo. Isto mesmo está na Carta Apostólica, Porta Fidei, nº 2: "... Sucede não poucas vezes que os cristãos sintam maior preocupação com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria fé...".

Perdoe-me meu atrevimento de lhe tirar um bocado de tempo para ler este e-mail. E se não mo proibis teria ansiedade até de comunicar algum outro ponto de nossa evangelização. Peço que me abençoe e um FELIZ NATAL! Pe. Achylle A. Rubin





segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Ainda Pastoral da familia

O tema da familia considero-o pouco elaborado.Precisamos começar por entender que a familia é o chão natural onde nasce e cresce a vida humana, à semelhança das sementes do Evangelho que precisam cair em terra boa. Entretanto a pastoral familiar ainda continua tratando o familia como objeto e não como sujeito evangelizador. Então, a primeira coisa deve-se restituir à familia as tarefas que lhe pertencem, como ao arbusto pertence a responsabilidade e o merecimento das flores que dele brotam. Em concreto, a catequese como está estruturada rouba aos pais essa tarefa sem ter para isso a autoridade necessária. Conclusão: como preparamos os noivos para o matrimônio???




terça-feira, 13 de novembro de 2012

A educação tarefa dos pais

Muito obrigado por ter divulgado a fala do Papa sobre a violência. Estimula-nos a refletir sobre este e outros problemas graves, como as dependências ao alcool e às demais drogas. Como minha mente se move em busca das "causas últimas" dos fenômenos que aparecem, pergunto-me, qual seria a raiz desses problemas, que sendo tratada adequadamente poderia trazer esperança de resposta, ainda que muito lentamente. Estou dizendo que entrou na mente dos que sentem a responsabilidade de auxiliar na solução dos problemas humanos, que a resposta seria ocuparmo-nos com eles a partir do social, entendido como as chamadas estruturas sociais. Como tenho preocupação com a pastoral, torno-me contestador a respeito. Entendo que a chave do problema humano reside na FAMILIA. De um lado, o inimigo da Igreja está, hoje, fazendo da família o primeiro setor a ser agredido. De outro lado, os membros  mais responsáveis da Igreja, tratam a familia ainda com métodos antiquados de 50 anos atrás, quando foi elaborado o primeiro Plano de Pastoral. Naquela época a familia exercia um papel mais decisivo na educação da fé de seus numerosos filhos. Com as mudanças que estamos habituados a perceber, as famílias se tornaram egoistas e, além de evitarem os filhos, encontram no trabalho o pretexto para se ausentarem do lar. Ora, a pastoral achou então que deveria assumir no lugar dos pais a educação da fé, com a catequese, as pastorais da infância, da adolescência e da juventude. Com o Plano de Pastoral, tributário da era tocnológica, desde 50 anos atrás, parace que não se entendeu mais o rol da família na educação, pois também o Estado entende sempre mais assambarcar a educação civil das crianças. Os pais, com isto, são estimulados a terceirizar a educação em favor do Estado e da Igreja. E não se entende mais que a familia é a raiz do Estado e da Igreja. É o bastião da defesa dos valores humanos, sendo a ÚNICA, ÚNICA autoridade capaz de educar um ser humano. Entendo que, atualmente, a Pastoral da família, a catequese, são a tentativa de reconquistar, ou refazer, aquilo que não foi feito em tempo, e nas condições adequadas. Significa tratar a planta depois que as raizes estiverem secas, ou tratar os ramos e descurar as raizes. Um senhor leigo disse-me um dia: a pastoral quer construir o Reino de Deus a partir do telhado...

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Salvar a autoridade dos pais

Estive lendo o Boletim da Pastoral da Família de outubro último. Adimirei muito o grande trabalho que a Pastoral Familiar desenvolve. Por outro lado despertou em mim simpre mais a urgência da proposta que entendo como uma iniciativa de absoluto valor: restituir à família as tarefas que deveriam ser entregues à ela. Sem as tarefas concretas, os pais, como tenho afirmado, são tentados a terceirizá-las em favor da escola para a educação civil e, em favor da Catequese para a educação na fé. Muitos afirmam e, creio, também as diretrizes catequéticas, que os pais são os primeiros catequista. Entretanto, sendo esta tarefa assumida pela pastoral catequética, desconhecendo o princípio de subsidiariedade, os pais se desinteressam dela. Considero também que para a preparação para a eucaristia não é necessário, nem conveniente, o modelo teológico dos Assessores da CNBB. Basta recordar a orientação de S. Pio X, há mais de um século. Pode-se inclusive institucionalizar um novo método para a preparação dos primeiros sacramentos. Bastaria que os pais dêm razão ao pároco sobre essa preparação a seus filhos. Alegrei-me com o discurso de Bento XVI em Ancona, dia 11/09/11, onde ele afirma que "a família não é só objeto de nossa pastoral, mas sujeito"... Por isso: "devemos superar uma visão redutiva da Família, que a considera como um mero destinatário da ação pastoral...". Creio que os pais, desde a criação, foram por natureza constituidos os únicos sujeitos aptos para educar, desde o momento da concepção de um novo ser humano. A situação das escolas revela o descaso dos pais na educação. Dom João Bosco, peço-lhe desculpas por eu voltar novamente sobre esse assunto.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Subsidiariedade na pastoral

Adimiro e reconheço com admiração todo o esforço que se dispende na pastoral da juventude. Mas como professor de metafísica por longos anos, acostumei-me a buscar sempre as causas mais profundas dos fenômenos. Em nosso caso, tomo como exemplo o fato de nosso Arcebispo, Dom Mauro, na solene administração do sacramento da Crisma, citar a piada dos morcegos. Diante desse fato, se nós nos perguntassemos qual a causa mais profunda dos jovens não aparecerem mais na igreja, após esse sacramento, iriamos certamente concluir  que os jovens não têm fundamento familiar da fé. Os pais são á única autoridade para educar uma pessoa, coisa que deve começar com o ato primeiro de gerar um filho. A autoridade eclesiástica condena o Estado que não observa o princípio de subsidiariedade (Cfr Quadragesimo Anno), mas a nossa pastoral catequetica também não respeita esse princípio. Em consequencia os pais terceirizam a educação cívica em favor da escola e a educação da fé em favor da catequese. Concluo que há algo de errado na estrutura da pastoral.  Acabo de inserir no meu blog  um pequeno comentário sobre o Plano de Pastoral (achyllerubin.blogspot.com). Desculpa minha insistência

sábado, 6 de outubro de 2012

O componente social da pessoa individua

Nesta manhã, ao ler na Liturgia das Horas a carta de S. Bruno, aflorou-me intensamente um dos aspectos que mais está entravando nossa pastoral. Entendo por esse aspecto o "social". Enquanto não nos libertarmos dessa categoria, como parece estar sendo entendida pela dependência de suas origens, a pastoral permanece apontando para um objetivo mal identificado.
A mudança de rota está dentro do Documento de Aparecida que repete Novo Millenio Ineunte, nº28-29: "A todos nos toca recomeçar a partir de Cristo...". Em continuação o DA cita o então Cardeal Ratzinger: "não se começa a ser cristão por uma decisão ética, ou uma grande idéia, mas pelo encontro com  um acontecimento, com  uma Pessoa..." (DA, 12).
Uma grande ideia é a idéia de "social". Atribue-se ao termo social um significado dependente da filosofia socialista, ou até marxista. Imagina-se o social como uma substância que se contrapõe e até se opõe à suabstância pessoa. Por isso tem-se atribuido à mesma responsabilidades, capaz de virtudes e de vícios. Falou-se por isso de "pecado social". De tal sorte que as Diretrizes da Evangelização indicam "três âmbitos": a pessoa, a comunidade e a sociedade (Cfr   Nicolau João Bakker, Planejamento pastoral, REB julho 2012).
Ora, o "social" não é um ser físico, substancial. Trata-se de um componente moral da pessoa individua, que desde sempre foi definida como "animal social". Interno na própria natureza da pessoa, refere-se sempre à educação e comportamento da pessoa indivídua.
Se ajustarmos na evangelização o verdadeiro sentido do componente "social", as consequências acorrerão de imediato. Bento XVI, no inciso 03 do discurso de abertura da Conferência de Aparecida, apelou para "a prioridade da fé e da vida nele"(em Cristo), e que esta prioridade não pode ser considerada uma fuga para o "intimismo".

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Método e objeto

Viver a missão na Igreja hoje




Foi-nos enviada pelo Pe. Jeremiah Murphy, SAC, a conferência do Pe. Ângelo, proferida no II Congresso Geral da União do Apostolado Católico, sob o título “Viver a missão na Igreja hoje”. Na carta do Pe. Jeremiah se pede que essa conferência seja um “texto lido e partilhado com reflexões nas Comunidades Locais”... Entendi que esse seria um convite para se colaborar com reflexões oportunas e não sei se importunas, pelo quê, peço desde já desculpas.

A conferência do Pe. Ângelo me dá a oportunidade de fazer considerações muito atuais a respeito de toda uma corrente de pensamento teológico que, segundo entendo, requer ser discutida.

1. A primeira consideração que entendo colocar em discussão é referente à “visão”. Começo pedindo que se medite um pouco sobre se podemos “desenvolver a missão da Igreja”, encontrando soluções para a Evangelização a partir do “diagnóstico” das “mudanças socioculturais..., das profundas transformações, caracterizadas como o fenômeno da globalização...”.

É evidente que essa postura inicial conduz a um ponto de vista e “todo ponto de vista é a vista de um ponto”. Entretanto, parece-me que esse principio não pode ser aceito para o objeto que se está tratando. Por maior que tenha sido a autoridade dos que o inventaram e o divulgaram, parece-me que ele conduz direto ao relativismo.

Parece-me que se está dependendo da metodologia das ciências exatas, desenvolvida por Thomas Kuhn com sua teoria dos paradigmas das ciências que mudam de acordo com as circunstâncias históricas. Os paradigmas desse filósofo das ciências significam visões do mundo físico usadas pelos cientistas em suas pesquisas, que mudam de época em época. Assim, por exemplo, a visão de mundo de Newton mudou com a visão de Einstein .

Entretanto, a filosofia e a teologia não se regem por esse conceito relativo de paradigma. Elas representam um domínio do saber em nível bem diverso e com método também diverso.

Precisamos, por isto, questionar essa fixação em colocar sem mais nem menos a Evangelização sobre o fundamento relativo dos paradigmas. Existem sim pontos de vista na Evangelização, e que mudam de tempos em tempos, mas não creio que mereçam ocupar o lugar que se lhes atribui. Eles são elementos relativos que facilmente nos distraem do principal e mais determinante. Em momentos, em encontros de trabalho na preparação da V Conferência de Aparecida, tem-se reconhecido que não podemos mais supor esse elemento “principal”. Por exemplo, num congresso na Colômbia, uns dois anos antes, entre os novos carismas e novas comunidades de vida consagrada, foi elaborada uma carta ao Papa, onde se lê que a América latina é uma região de muita fé e, entretanto, se está “supondo” a presença de Jesus Cristo na ação pastoral.

A absoluta “prioridade da fé e vida em Cristo”, acentuada por Bento XVI, no discurso de abertura, tem sido suposta por muitos, tanto na interpretação do documento, como na ação evangelizadora. E, entretanto, foi considerada, e com razão, “o fio vermelho” que perpassa todo o Documento, reconhecida e valorizada pelos participantes da V Conferência como ponto de partida de todas as considerações.

Encontram-se no inciso 3 do discurso do Papa outras palavras decisivas que marcaram todo o Documento de Aparecida e orientaram o grande objetivo, “ser discípulos e missionários de Jesus Cristo que quer dizer buscar a vida nele...a verdadeira vida digna deste nome...”.

Em seguida aparece uma afirmação que não deixa dúvidas sobre a intenção do Papa. Advertiu que isso não representa “uma fuga para o ‘intimismo’”, mas sim, o cuidado de evitar o reducionismo do sentido de ‘realidade’. Pois: “O que é ‘realidade’? O que é o real? São ‘realidade’ só os problemas sociais, econômicos e políticos?.. Falsificam o conceito de realidade com a amputação da realidade fundante... Deus”...

Ora, “supor” essa realidade é também uma amputação prática, pois, não leva a serio Deus como causa universal e absoluta de todo ser e agir. É urgente dar-lhe o lugar e a função que lhe cabe, a prioridade especulativa e prática sobre o ser e sobre o agir.

A mídia no dia seguinte ao discurso do Papa testemunhou a forte impressão dessas palavras sobre os bispos presentes em Aparecida. Tanto que no Documento final aparece clara essa orientação, citando as palavras do ainda Cardeal Ratzinger: “A todos nos toca recomeçar a partir de Cristo” (DA, nº 12)! Portanto, não a partir dos pontos de vista da análise sociocultural.

Não falta ao Documento de Aparecida afirmações explicitas de que não são as realidades socioculturais as que identificam a “missão na Igreja hoje”, como se diz no seguinte texto:

“O que nos define não são as circunstâncias dramáticas da vida, nem os desafios da sociedade, ou as tarefas que devemos empreender, mas acima de tudo o amor recebido do Pai, graças a Jesus Cristo pela unção do Espírito Santo” (Nº14).

Já Santo Agostinho contestava os que viviam “murmurando” contra os males da época. Extraio da Liturgia das Horas da quarta-feira da 20ª semana do tempo comum, o seguinte trecho de seus sermões:

“... encontras homens a murmurar contra seu tempo como se o tempo de nossos pais tivesse sido bom... Julgas bons os tempos passados porque já não são os teus, por isso são bons. Se já foste liberto da maldição, se já crês no Filho de Deus, se já estás impregnado... das Sagradas Escrituras, admiro-me de que consideres bons os tempos de Adão... Desde aquele Adão até o Adão de hoje, trabalho e suor, espinhos e cardos...” (Cf Gen 3,19)... capitalismo, socialismo, neoliberalismo...

A importância que se dá às análises socioculturais sugere que a fé no Filho de Deus serviu para outros tempos, hoje, porém, essas análises mostram tanta urgência que não podemos aguardar pela lentidão da fé. Seria então melhor deixá-la “suposta”, a fim de imprimir mais eficácia e praticidade à ação na conquista de “outro mundo possível”, através de nossos planos de pastoral...

2. Outro aspecto que proponho para ser considerado se refere ao método com que abordamos a “visão” de mundo para termos uma visão evangélica. Fiz acima referências a respeito dos paradigmas.

Entendo, porém, de grande importância acrescentar algo mais. Considero que se deve levar em conta que todo objeto de nosso conhecimento supõe também um método correspondente. Não posso estudar, por exemplo, uma planta com o mesmo procedimento, o mesmo método, com que estudo uma pedra.

Assim que, se o objeto da Evangelização é “a fé e a vida em Cristo”, o método relativista da visão das “mudanças socioculturais”, não pode ser adequado, pois, esse objeto não muda de acordo com as mudanças socioculturais, ou só muda em aspectos secundários, relativos. São duas realidades díspares, que acontecem em planos distintos e requerem métodos diversos. O objeto “homem” não pode ser tratado com o mesmo método com que se trata o objeto “átomo”.

A evangelização, por isso, supõe um método próprio, pois, a fé e a vida em Cristo, transcendem as “mudanças” socioculturais de nossos e de todos os tempos. O método embasado na sociologia não condiz com o objeto da evangelização. É o próprio objeto da teologia que determina seu método. A sociologia que investiga situações mutáveis e relativas dos fatos sociais, não é adequada para a teologia. A sociologia usa o “método cientifica” com o qual não podemos abordar o objeto da evangelização.

Quem tem “competência” para auxiliar no estudo de objetos teológicos é a metafísica. A metafísica foi amplamente aproveitada pelo grande teólogo Santo Tomás de Aquino. De tal sorte que, ao mesmo tempo em que ele elaborou a teologia, também fez progredir a visão metafísica de Aristóteles (cf obras de Etienne Gilson).

Em quê a metafísica ajuda a teologia? Em vários aspectos: educa a mente para três hábitos: primeiro, para a visão do transcendente, segundo, para a percepção do ultrasensivel e, terceiro, para evidenciar as causas últimas e mais profundas da realidade. A análise sociológica das causas da injustiça fica no imediato sensível, contábil e numerável. As causas das injustiças são outras e mais profundas.

Precisamos entender que “o lugar para entender e interpretar a fé em Jesus Cristo são os pobres... e disso a Teologia da Libertação não abre mão”, como escreveu o Pe. Libânio em artigo no Jornal Opinião de 26/1/2009, não evidencia a causa mais profunda das injustiças. Essa causa não está nas injustiças contra os pobres, mas está no afastamento de Deus e nisto consiste o pecado, raiz de todo mal. Daí que Jesus não veio primariamente pelo motivo dos pobres, mas pelo motivo dos pecadores (cf Mt. 9,12-13; Lc 15,11s).

A busca e a compreensão correta das causas é tarefa da metafísica, esse dom de Deus concedido à Igreja através de seu instrumento, Santo Tomás de Aquino. Muitos filósofos e também muitos teólogos estão enfarados desse dom de Deus, à semelhança dos israelitas enfarados do maná no deserto.

Entretanto, no dia 16 de junho deste ano de 2010, Bento XVI proferiu uma catequese sobre Santo Tomás de Aquino. Nela recordou que Leão XIII, “grande promotor de estudos tomistas, declarou Santo Tomás padroeiro das escolas e das universidades católicas”. O Papa recordou ainda os dois documentos do Concilio Vaticano II, o que trata da “formação para o sacerdócio”, Optatam totius (nº 16), e o que trata da educação, Gravissimum educationis (nº 10), onde o “pensamento de Tomás foi explicitamente recomendado” para a boa formação dos sacerdotes.

Recordo ainda a Fides et ratio de João Paulo II que do começo ao fim recomenda a metafísica para a teologia, exaltando a harmonia que Tomás de Aquino conseguiu estabelecer entre fé e razão. Por isso, encontramos nessa encíclica: “Santo Tomás foi sempre proposto pela Igreja como mestre de pensamento e modelo quanto ao reto modo de fazer teologia” (Fides et ratio, nº 43). Logo adiante, conclui: “A sua filosofia é verdadeiramente uma filosofia do ser, e não do simples aparecer” (Nº44). As análises do social são ainda orientadas pelo “aparecer”. Não têm condições de nos fornecer o conhecimento das causas mais profundas das injustiças no mundo.

3. Se o método deve corresponder ao objeto, como o caminho ao seu termo de chegada, ele merece especial atenção. O método das ciências exatas, comumente chamado de “científico”, se caracteriza como analítico, fragmentário, enquanto que a filosofia e a teologia requerem um método sintético, unitário. Ao saber de institutos de filosofia e teologia que usam “método científico”, fico preocupado sobre os resultados de tal ensino.

Ilustro o método sintético com o exemplo de Santo Tomás de Aquino. Ao iniciar sua carreira se pôs a comentar, como os demais mestres da época, as Sentenças de Pedro Lombardo. Não tardou, porem, em se dar conta de que as Sentenças eram demasiado analíticas e, por isso, não seriam adequadas para a teologia. Daí partiu para uma visão sintética, unitária, no que resultou a Suma Teológica. Ele próprio comparou o método ao círculo por ser uma figura perfeita. Isto é, primeiro tratou sobre Deus, segundo, sobre Deus que desce e opera a criação e, terceiro, sobre Deus que, após a queda, eleva toda a criação de volta para si. (cf Torrell, J-P. OP, Iniciação a Santo Tomás, pessoa e obra, Loyola,1999).

Interessantes dados sobre o método encontramo-los também na terceira encíclica de Bento XVI, Caritas in veritate. Ao se referir à Populorum Progressio de Paulo VI, faz referências ao método, escrevendo que Paulo VI...

“tinha visto claramente que, entre as causas do subdesenvolvimento, conta-se uma carência de sabedoria, de reflexão, de pensamento capaz de realizar uma síntese orientadora, que requer ‘uma visão clara de todos os aspectos econômicos, sociais, culturais e espirituais’. A excessiva fragmentação do saber, o isolamento das ciências humanas relativamente à metafísica, as dificuldades do diálogo entre as ciências e a teologia, danificam não só o avanço do saber, mas também o desenvolvimento dos povos, porque, quando isso se verifica, fica obstaculizada a visão do bem completo do homem... É indispensável ‘o alargamento do nosso conceito de razão e do uso da mesma’” (Caritas in Veritate, nº 31). Esta última frase Bento XVI tirou-a de sua célebre conferência na universidade de Regensburg, dia 12 de setembro de 2006.

Que dizer então do método ver-julgar-agir? Considero-o, precisamente, analítico, fragmentário, adequado só para a sociologia. Segundo me consta, foi inventado pelo então Padre belga, Cardjin, que depois se tornou Cardeal. Ele era assessor da JOC e começou, em fins da década de quarenta, ou inícios da cinquenta, a usar tal método tributário da sociologia religiosa que despontava, na época, com grande entusiasmo. Ora, a sociologia pertence ao mundo das ciências exatas e usa “método científico”, analítico, estatístico e por isso, inadequado para a filosofia e a teologia. A sociologia, quando se põe a diagnosticar as raízes das doenças, fica só nas aparências, na superfície.

Graças a Deus, talvez mais por intuição e certamente por influência do discurso do Papa, os bispos em Aparecida inverteram o sentido do “ver-julgar-agir”, centrando-o no mistério da Igreja e não nos desequilíbrios sociais, econômicos e políticos. Diz o documento: “Este método implica em contemplar a Deus com os olhos da fé através de sua Palavra revelada...” (DAp, nº 19). Quer dizer que o “ver” não mais deverá ter aquele sentido que se lhe costuma atribuir. Para a pastoral cabe o “ouvir” a Palavra revelada e não o “ver” os fatos sociais.

4. O que nos indica tudo isso? Indica-nos que a realidade sobre a qual devemos buscar o fundamento último, não é a realidade que nos é oferecida pela analise conjuntural das estruturas, mas é aquela oferecida com o auxílio dos paradigmas metafísicos, com sua visão e método. Tais paradigmas elevam nossas mentes ao suprasensível, graças ao quê, elas passam a se mover em três dimensões: na dimensão da formalidade não sensível de toda realidade, na da realidade transcendente, e na ordem das causas últimas de toda a realidade.

Aí está o chão sobre o qual os teólogos devem pousar seus pés se pretendem ser realistas. É um chão ontológico e também prático. O ontológico é constituído pela vida nova, “a verdadeira vida digna deste nome”, como insistiu Bento XVI no discurso de abertura da Conferência de Aparecida. O prático acontece quando em toda ação evangelizadora Deus ocupa o lugar de causa universal e absoluta de todo ser e de todo agir.

Também o mundo deverá ser visto nessa visão. As “mudanças socioculturais... caracterizadas como o fenômeno da globalização”, o “diagnóstico da doença”, merecem sim ser vistas, mas apenas como tema secundário, coadjuvante, e não como tema central e orientador.

Com efeito, a vinda do Cristo deu outro sentido ao “mundo”, precisamente aquele sentido tachado, negativamente, de “espiritualista” pelos que dão a primazia à realidade sociocultural. Bento XVI, no discurso de abertura, rebate os que nos acusam de “uma fuga para o ‘intimismo’... de abandono da realidade urgente dos grandes problemas econômicos, sociais e políticos da América Latina e do mundo... fugindo da ‘realidade’ para um mundo espiritual”.

Usou-se no Concílio a realidade da Encarnação do Verbo para mostrar que a “natureza”, o “mundo” devem ser vistos com outros olhos, diversos daqueles da sociologia. Efetivamente, se o Verbo assumiu uma natureza humana, e, com ela, toda a criação, não foi para deixá-las lá “em baixo”, rebaixando-se ele próprio, mas para elevá-las a um nível superior. A figura verbal “assumir” foi usada desde o início do cristianismo, a fim de nos ajudar a entender o que se passou no homem e no mundo com a descida do Verbo. Desceu para elevar tudo a um sumo: De Deo creante et elevante.

No Catecismo da Igreja Católica, há um resumo dessa fé na elevação de tudo, professada desde sempre. Termina com a citação de Tomás de Aquino, tirada do Ofício de Corpus Christi: “O Filho unigênito de Deus, querendo fazer-nos participantes de sua divindade, assumiu nossa natureza, a fim de que, uma vez feito homem, fizesse dos homens deuses” (CIC nº 460). Eis o eterno desejo e ansiedade do homem! (Gn 3, 5).

Ao assumir nossa natureza, Cristo assumiu também a historia, pois, “entrou como homem perfeito na história do mundo, assumindo-a em si mesmo e em si recapitulando todas as coisas” (Gaudium et Spes, nº 38; Ef 1,10), elevando tudo a um sumo grau.

São Paulo também mostrou ter entendido essa universal assumpção, a do homem e a do universo: “... a criação foi sujeita..., todavia, com a esperança de ser também ela libertada do cativeiro da corrupção, para participar da gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Pois sabemos que toda a criação geme e sofre como que dores de parto até ao presente dia” (Rom 8, 20-22).

Portanto, tanto o homem como a criação toda, só tiveram a ganhar, com a elevação ao sobrenatural. Ainda que não sensível essa elevação é real. Não representa uma fuga, uma alienação. Representa um imenso enriquecimento, dom gratuito do infinito amor misericordioso de Deus Pai.

Hoje, nunca é demais insistir que a visão cristã do “mundo” tem outro sentido. Chamou-se de sentido sobrenatural, outra designação que foi desqualificada, designada negativamente com os slogans “sobrenaturalismo”, “espiritualismo”. A desqualificação do sobrenatural, porém, representa, em nossos dias, um dos problemas centrais da crise do cristianismo.

Foi o que o próprio senador italiano, Marcello Pera, caracterizou, apesar de não ser católico, dizendo: “está em curso uma guerra, a guerra entre o laicismo e o cristianismo”.

Pelo contexto se trata da guerra contra o caráter sobrenatural da Igreja. Pois, o sobrenatural, por si só, rompe com os projetos humanos, por si só contesta as ilusões humanas. Não será essa a causa por que o laicismo desencadeia guerra contra a Igreja? Ele sente seus esquemas contestados, censurados e “por isso o mundo vos odeia” (Jo 15, 19). Os que colocam toda a ilusão num “outro mundo possível”, dificilmente abandonarão sua ilusão para reconhecer o absoluto do “caminho, verdade e vida”.

Onde, talvez, estamos vendo na Igreja a maior das ilusões? Acredito ser justamente a busca do Reino de Deus pelo saneamento do social, das “realidades socioculturais”. Enquanto a Igreja se ocupa de tais “realidades” não há guerra, sua popularidade cresce. É apontada como a primeira, ou segunda instituição com maior aprovação da opinião pública. Mas, quando e onde ela faz aparecer sua verdadeira dimensão sobrenatural, seu mistério, então atrai a guerra. Por que o Papa e seu Magistério são os mais alvejados? Não será porque ali se encontra o baluarte de defesa do mistério da Igreja?

O mito da caverna de Platão poderia nos ilustrar muito bem esse fenômeno que estamos presenciando. Resumindo-o, e até simplificando-o, imaginemos um grupo de homens acorrentados dentro de uma caverna, de sorte a só poder olhar para a parede do fundo. Lá fora, há alguns metros da ampla entrada, está aceso um fogo. Entre o fogo e a entrada passam coisas reais, cujas sombras se projetam na parede do fundo, de sorte que os homens acorrentados só conseguem ver as sombras projetadas. Um deles, porém, consegue desvencilhar-se e sair da caverna e extasiado contemplar a realidade do mundo. Com a nova certeza, ele volta, a fim de convencer os demais de que as sombras das realidades não são o mundo real.

Platão nos conta com uma pergunta o que acontecerá com esse homem. Ele que viu o mundo real, “não seria para os acorrentados motivo de riso e não diriam dele que, tendo saído, voltou com a vista estragada? ... e se ele buscasse libertá-los e conduzi-los para fora e pudessem agarrá-lo... acaso não o matariam?” (cf Reale, G., História da filosofia antiga, II, 193s).

Giovanni Reale comenta, entre outras coisas, que todo aquele que tenta tirar outros de suas ilusões será perseguido de morte. Platão talvez pensasse em Sócrates, nós pensamos em Jesus. Jesus veio nos tirar de muitas ilusões, entre outras, da ilusão de um reino secular de prosperidade e paz. Digo ainda, da ilusão de um reino de “fraternidade” e “solidariedade”.

Foi por isso que Jesus foi condenado. Pensemos também na Igreja e em todos os que se põem na perspectiva da visão sobrenatural do mundo, que ultrapassa o conhecimento sociológico do mesmo. Serão perseguidos.

No discurso inaugural da V Conferência de Aparecida, Bento XVI veio nos falar da realidade, da “vida digna deste nome”: “Só quem reconhece Deus, conhece a realidade...”. E quem conhece Deus é só Cristo e então, se não conhecemos Deus em Cristo, “toda a realidade se converte em um enigma indecifrável...”. Até quando vamos permanecer na ilusão deste “enigma indecifrável”?

Aqui, portanto, a conclusão se impõe... É ilusão do “mundo secularizado”, “laicista”, fixar-se nessa realidade de mundo indecifrável. Ai daqueles que tentam corrigir essa ilusão. E, no entanto, precisamos desvencilhar-nos das amarras do puro sensível para podermos admitir uma visão sobrenatural de Igreja e de mundo.

A dificuldade, hoje, está em admitir que “o Reino de Deus é dom do Pai” (Doc. Santo Domingo, nº 5) e que, por isso, ele ganha a nova dimensão de assumido pelo Verbo. Quando os fariseus perguntaram a Jesus sobre a vinda do Reino de Deus, Jesus respondeu que o Reino de Deus não é aparente (Lc 17, 20). O reino era ele próprio, mas não era visível. Se o fosse os fariseus certamente não lhe teriam feito essa pergunta.

Nosso teólogo, Pe. J. B. Libânio,sj, criticou acerbamente o Documento de Santo Domingo, por afirmar que “o mistério do Reino... é dom do Pai” (SD, nº 5). Criticou-o porque aí “a salvação é vista mais como um dom já feito do que como um seguimento comprometido de Jesus”. Assim o documento “se afasta do tradicional método de nossa pastoral: ver-julgar-agir” (cf Libânio, prefácio de Santo Domingo da ed. Loyola, ps. 56-57). Essa crítica se alastrou depois por muitos ambientes.

Entretanto, graças a Deus que os últimos dois documentos, o de Santo Domingo e o de Aparecida, representam para a Igreja da América Latina uma feliz e verdadeira “correção de rota”, precisamente por voltar a centrar-se na verdadeira perspectiva do Evangelho, professada por Paulo na carta aos Efésios: “Porque é gratuitamente que fostes salvos mediante a fé. Isto não provém de vossos méritos, mas é puro dom de Deus” (Ef 2, 8-9).

Esse texto de São Paulo foi um dos conteúdos da assinatura conjunta, dia 31 de outubro de 1999, entre a Igreja Católica e a Igreja Luterana. Nisso ambas as Igrejas estiveram de acordo. Coisa estranha, no Brasil não se ouviu nenhuma voz que fizesse referência a esse grande acontecimento ecumênico. Ouviu-se algo só na lembrança do décimo aniversário, em 2009. Pensei sempre que o motivo fosse a afirmação consensual conjunta de que a justificação e a salvação são “dons do Pai”.

5. O teólogo há pouco citado coincidentemente é jesuíta. Alguns deles são discípulos de teólogos influentes na Igreja. O que aconteceu nos últimos cinquenta anos? Ouso propor como hipótese de estudo.

Começou-se a dar pouca importância ao fato do pecado pessoal, com sua origem no pecado original, transferindo toda culpa sobre as estruturas sociais. Coincidentemente, Pelágio também começou negando o pecado original. Achou que, não tendo inclinações congênitas para o mal, o homem não precisaria da graça de Deus. E assim deu alimento à indignação de Santo Agostinho e, sobretudo, de São Jerônimo.

Desde o século XVI, surgiu uma grande “urgência”: conter o avanço vertiginoso do protestantismo. Temeu-se que a demasiada confiança na graça de Deus não teria poder suficiente para contrapor-se a tal avanço. Em razão disso, Santo Inácio teria desejado uma maior acentuação da iniciativa humana, pois, as circunstâncias históricas estariam a exigir maior urgência de ações práticas.

Sobre o fim do século XVI, o Provincial dos jesuítas, Pe. Cláudio Aquaviva, pediu para o teólogo jesuíta, Luiz Molina, comentar a primeira parte da Suma Teológica, dando-lhe uma interpretação mais voltada para a ação humana. Molina escreveu uma obra com o título Concordância. Tratava-se de uma nova teoria da relação natureza e graça, ação do homem e ação de Deus. O mesmo provincial declarou depois que essa posição teológica deveria ser a doutrina oficial da Companhia de Jesus (cf. Dictionaire de Theologie Catholique, verbete Molinismo).

Se observarmos, entretanto, a história das doutrinas, em que os discípulos foram ainda mais longe do que os mestres, não admira que, hoje, essa “teologia praxista” tenha conseguido impor-se sempre mais na Igreja e também entre nós os palotinos.

Sintomáticas, acredito eu, estão sendo as duas “Notificações” da Congregação pela doutrina da fé, advertindo, e apontando, ultimamente, imprecisões doutrinais, por motivos semelhantes. Trata-se dos dois teólogos jesuítas, o salvadorenho Pe. Jon Sobrino e o americano Pe. Roger Haigt.

Juntou-se a essa boa intenção de maior praticidade da fé a poderosa influência do marxismo. Sobre o fim da guerra, 1945, houve entre alguns teólogos a descoberta do marxismo e a tentativa de “batizá-lo”, por ser uma doutrina com mais poder de transformação das sociedades injustas. Minha tese de doutorado sobre filosofia social, aprovada em inícios de 1958, aponta para esse fenômeno.

Ao mesmo tempo, desde então foram aparecendo escritos e pregações com o fim de “conscientizar” os pobres a respeito de sua situação injusta de explorados, de dependentes e, por fim, de excluídos. Começavam a surgir atitudes que pareciam não mais darem crédito à eficácia da fé cristã, de sorte que era como se a “práxis”, herdada do marxismo, se sobrepusesse à fé. Entendo que hoje as pastorais deveriam ter em mente tais influências que obscurecem e enfraquecem a fé na presença e ação de Deus como causa primeira e universal sobre todo ser e todo agir.

6. Estou manifestando alguns aspectos que a conferência do Pe. Ângelo me sugere, a modo de um convite para se refletir sobre o assunto. Deve-se reconhecer, entretanto, de que a afirmação do sobrenatural não está faltando nessa conferência e é até fortemente acentuada com a palavra de André Malraux: “... o século XXI será místico ou não existirá”.

Comparando, porém, as duas colocações, esta de Malraux, com as anteriores, com o “diagnóstico da doença”, fundamentado nas “mudanças socioculturais” e nas “profundas transformações, caracterizadas como o fenômeno da globalização”, surge um sério questionamento. Não haverá aí um salto indevido de uma coisa a outra de natureza completamente diversa? A fé, a mística, não será nunca posta em julgamento por esse “diagnóstico”. Ela transcende a todos os momentos históricos da humanidade. Não podemos ligar a fé a este fundamento passageiro e relativo. O problema não reside aí, na relação entre “mudanças socioculturais” e vida mística. O problema está mais acima, na relação entre natureza e graça, fé e prática da fé.

Estou propondo considerarmos, para todo efeito, dois sentidos de “mundo”. O mundo da criação que se afastou de Deus, que não conhece a Deus (Jo 1,10) e o mundo da encarnação do Verbo, “assumido” por Deus. “O mundo os odeia porque eles não são do mundo” (Jo 17, 14). Quando contemplamos uma igreja superlotada de fiéis, ali brilha a alegria de outro mundo, “novo céu, nova terra” (Ap 21, 1). Este mundo devemos ter presente em nossas reflexões.

Os documentos do Concílio Vaticano II contêm afirmações que, talvez por serem consideradas abstratas, não chamam a atenção. Por exemplo, Gaudium et spes dá uma definição de Igreja a ser meditada: A Igreja “é como que o fermento e a alma da sociedade humana a ser renovada em Cristo e transformada na família de Deus. Esta interpenetração da cidade terrestre e celeste não pode ser percebida senão pela fé” (nº 40).

Estou tratando desta cidade celeste, “fermento e alma” (Lc 13,21). Ela é que constitui o corpo vivo e real de Cristo, ainda que só “percebido pela fé” (cf Lumen Gentium, nº 7). Dela devemos nos ocupar, tanto em nossas reflexões, como também em nossas ações evangelizadoras. Não podemos mais estar perdendo tempo e dinheiro atrás da “massa” sociocultural. Julgo que precisamos nos ocupar do fermento e tratar a “massa”, enquanto “interpenetrada” e adequadamente relacionada com o “fermento”.

7. Finalmente, decisivo para isso seria entendermos a relação entre esses dois termos, massa e fermento, natureza e graça, ação humana e ação de Deus, fé e prática da fé.

Não é o caso de tratar aqui, longamente, esse eterno problema da humanidade, sobretudo a partir de Parmênides, caracterizado como a Esfinge a nos propor o mais fundamental enigma filosófico. Trata-se do problema de como vencer o dualismo entre os termos apontados.

Digo que a realidade múltipla, toda ela, se nos apresenta dual, composta de um componente que “exerce” no todo uma função ativa determinante e outro que “exerce” uma função mais passiva, determinada. Por exemplo, as plantas, os animais, os homens, todos são um composto da mesma matéria determinada e diferenciada por outro componente, a vida vegetal, animal e humana.

A esses componentes, todavia, não podemos atribuir-lhes nenhuma autonomia no existir, isto é, não acontecem nunca separados, só por pura imaginação. Existem apenas em função, em mútua relação. Por isso, o ser dual composto, só o entendemos e o definimos em seu “valor” ontológico, em sua natureza, como um todo composto.

Em consequência, todo agir é também fruto do todo composto e só assim podemos entendê-lo adequadamente. No caso da graça em que entra em questão nossa natureza, não é nem a graça que age e nem a natureza, é o todo composto de natureza e graça. Não podemos imaginar a graça e a natureza como seres separados e tentar uni-los, ou pelo artifício imaginativo do “equilíbrio”, ou pelo outro artifício um pouco melhor expresso da “articulação”.

Essas duas tentativas de nos livrarmos do dualismo não são adequadas porque supõem sempre salvar a unidade na diversidade dando foros de realidade aos componentes privados deles.

Temos um exemplo em casa. Na Igreja da América Latina há um louvável empenho em resolver o dualismo entre “discípulo e missionário”. Já na V Conferência de Aparecida, se não me engano, se esteve observando que melhor seria dizer “discípulo missionário”, ou “discípulo-missionário”, no esforço de vencer o dualismo entre ambos os termos. Na verdade a realidade ontológica é uma só composta de discipulado e missionaridade na mesma e idêntica pessoa. O agir desse ser discípulo-missionário esse sim se manifestará externo, em seus frutos.

Vicente Pallotti escreveu uma pequena frase que expressa essa realidade de forma perfeita. Encontramo-la num dos primeiros escritos sobre a natureza da obra, Apostolado Católico, isto é, universal, de cada qual. Escreve ali: “... a vida de Jesus Cristo – sua vida é seu apostolado – deve ser o modelo...” (Cf V.P. Documentos da fundação, trad. Pe. D. Rubin). Reclamei com meu irmão por ter esquecido na tradução o acento no “e” como consta no original italiano.

Portanto, antes de tudo devemos entender que, vida e apostolado, discípulo e missionário, formam uma única realidade dotada de dinamismo para a ação. Esta unidade é a raiz donde brota toda ação missionária. Essa relação, por causa do referido “isolamento relativamente à metafísica”, expresso por Bento XVI, resulta difícil de compreensão.

Os paradigmas metafísicos de “ato e potência”, “matéria e forma”, designam essa síntese de dois componentes de uma única e mesma realidade. Desse todo composto brota toda ação prática.

Entretanto, importa prestarmos atenção para o fato das “funções” distintas no todo de ambos os componentes. Porque, nos últimos tempos há infelizmente uma tendência a nos desorientar na compreensão. Está se dando primazia à “potência”, ao componente mais passivo e determinado e não ao componente determinante. Pretende-se definir o ser a partir da potência. Em nosso caso definir pela análise das conjunturas socioculturais. O caso mais contestável refere-se à primazia da natureza humana de Cristo sobre sua divindade, da natureza sobre a graça, da prática da fé sobre a fé, da missionariedade sobre o discipulado.

A ação vem a ser o fruto do todo, mas o componente ativo, determinante da ação é o que detem a primazia, pois ele dá identidade ao todo e também animação. Por exemplo, nossa matéria é animada pelo componente determinante, pela alma. Este caracteriza nossa matéria, de tal sorte, por exemplo, que um filósofo moderno achou de demonstrou a espiritualidade de nossa alma através da multifuncionalidade de nossas mãos.

Concluo estas breves considerações que a conferência do Pe. Ângelo me sugere. Gostaria de poder me explicar melhor verbalmente. Mas, de momento, peço que interpretem este meu pequeno intento como um desejo de contribuir para esclarecer pontos de vista considerados por mim de extrema importância.












Viver a missão na Igreja hoje




Foi-nos enviada pelo Pe. Jeremiah Murphy, SAC, a conferência do Pe. Ângelo, proferida no II Congresso Geral da União do Apostolado Católico, sob o título “Viver a missão na Igreja hoje”. Na carta do Pe. Jeremiah se pede que essa conferência seja um “texto lido e partilhado com reflexões nas Comunidades Locais”... Entendi que esse seria um convite para se colaborar com reflexões oportunas e não sei se importunas, pelo quê, peço desde já desculpas.

A conferência do Pe. Ângelo me dá a oportunidade de fazer considerações muito atuais a respeito de toda uma corrente de pensamento teológico que, segundo entendo, requer ser discutida.

1. A primeira consideração que entendo colocar em discussão é referente à “visão”. Começo pedindo que se medite um pouco sobre se podemos “desenvolver a missão da Igreja”, encontrando soluções para a Evangelização a partir do “diagnóstico” das “mudanças socioculturais..., das profundas transformações, caracterizadas como o fenômeno da globalização...”.

É evidente que essa postura inicial conduz a um ponto de vista e “todo ponto de vista é a vista de um ponto”. Entretanto, parece-me que esse principio não pode ser aceito para o objeto que se está tratando. Por maior que tenha sido a autoridade dos que o inventaram e o divulgaram, parece-me que ele conduz direto ao relativismo.

Parece-me que se está dependendo da metodologia das ciências exatas, desenvolvida por Thomas Kuhn com sua teoria dos paradigmas das ciências que mudam de acordo com as circunstâncias históricas. Os paradigmas desse filósofo das ciências significam visões do mundo físico usadas pelos cientistas em suas pesquisas, que mudam de época em época. Assim, por exemplo, a visão de mundo de Newton mudou com a visão de Einstein .

Entretanto, a filosofia e a teologia não se regem por esse conceito relativo de paradigma. Elas representam um domínio do saber em nível bem diverso e com método também diverso.

Precisamos, por isto, questionar essa fixação em colocar sem mais nem menos a Evangelização sobre o fundamento relativo dos paradigmas. Existem sim pontos de vista na Evangelização, e que mudam de tempos em tempos, mas não creio que mereçam ocupar o lugar que se lhes atribui. Eles são elementos relativos que facilmente nos distraem do principal e mais determinante. Em momentos, em encontros de trabalho na preparação da V Conferência de Aparecida, tem-se reconhecido que não podemos mais supor esse elemento “principal”. Por exemplo, num congresso na Colômbia, uns dois anos antes, entre os novos carismas e novas comunidades de vida consagrada, foi elaborada uma carta ao Papa, onde se lê que a América latina é uma região de muita fé e, entretanto, se está “supondo” a presença de Jesus Cristo na ação pastoral.

A absoluta “prioridade da fé e vida em Cristo”, acentuada por Bento XVI, no discurso de abertura, tem sido suposta por muitos, tanto na interpretação do documento, como na ação evangelizadora. E, entretanto, foi considerada, e com razão, “o fio vermelho” que perpassa todo o Documento, reconhecida e valorizada pelos participantes da V Conferência como ponto de partida de todas as considerações.

Encontram-se no inciso 3 do discurso do Papa outras palavras decisivas que marcaram todo o Documento de Aparecida e orientaram o grande objetivo, “ser discípulos e missionários de Jesus Cristo que quer dizer buscar a vida nele...a verdadeira vida digna deste nome...”.

Em seguida aparece uma afirmação que não deixa dúvidas sobre a intenção do Papa. Advertiu que isso não representa “uma fuga para o ‘intimismo’”, mas sim, o cuidado de evitar o reducionismo do sentido de ‘realidade’. Pois: “O que é ‘realidade’? O que é o real? São ‘realidade’ só os problemas sociais, econômicos e políticos?.. Falsificam o conceito de realidade com a amputação da realidade fundante... Deus”...

Ora, “supor” essa realidade é também uma amputação prática, pois, não leva a serio Deus como causa universal e absoluta de todo ser e agir. É urgente dar-lhe o lugar e a função que lhe cabe, a prioridade especulativa e prática sobre o ser e sobre o agir.

A mídia no dia seguinte ao discurso do Papa testemunhou a forte impressão dessas palavras sobre os bispos presentes em Aparecida. Tanto que no Documento final aparece clara essa orientação, citando as palavras do ainda Cardeal Ratzinger: “A todos nos toca recomeçar a partir de Cristo” (DA, nº 12)! Portanto, não a partir dos pontos de vista da análise sociocultural.

Não falta ao Documento de Aparecida afirmações explicitas de que não são as realidades socioculturais as que identificam a “missão na Igreja hoje”, como se diz no seguinte texto:

“O que nos define não são as circunstâncias dramáticas da vida, nem os desafios da sociedade, ou as tarefas que devemos empreender, mas acima de tudo o amor recebido do Pai, graças a Jesus Cristo pela unção do Espírito Santo” (Nº14).

Já Santo Agostinho contestava os que viviam “murmurando” contra os males da época. Extraio da Liturgia das Horas da quarta-feira da 20ª semana do tempo comum, o seguinte trecho de seus sermões:

“... encontras homens a murmurar contra seu tempo como se o tempo de nossos pais tivesse sido bom... Julgas bons os tempos passados porque já não são os teus, por isso são bons. Se já foste liberto da maldição, se já crês no Filho de Deus, se já estás impregnado... das Sagradas Escrituras, admiro-me de que consideres bons os tempos de Adão... Desde aquele Adão até o Adão de hoje, trabalho e suor, espinhos e cardos...” (Cf Gen 3,19)... capitalismo, socialismo, neoliberalismo...

A importância que se dá às análises socioculturais sugere que a fé no Filho de Deus serviu para outros tempos, hoje, porém, essas análises mostram tanta urgência que não podemos aguardar pela lentidão da fé. Seria então melhor deixá-la “suposta”, a fim de imprimir mais eficácia e praticidade à ação na conquista de “outro mundo possível”, através de nossos planos de pastoral...

2. Outro aspecto que proponho para ser considerado se refere ao método com que abordamos a “visão” de mundo para termos uma visão evangélica. Fiz acima referências a respeito dos paradigmas.

Entendo, porém, de grande importância acrescentar algo mais. Considero que se deve levar em conta que todo objeto de nosso conhecimento supõe também um método correspondente. Não posso estudar, por exemplo, uma planta com o mesmo procedimento, o mesmo método, com que estudo uma pedra.

Assim que, se o objeto da Evangelização é “a fé e a vida em Cristo”, o método relativista da visão das “mudanças socioculturais”, não pode ser adequado, pois, esse objeto não muda de acordo com as mudanças socioculturais, ou só muda em aspectos secundários, relativos. São duas realidades díspares, que acontecem em planos distintos e requerem métodos diversos. O objeto “homem” não pode ser tratado com o mesmo método com que se trata o objeto “átomo”.

A evangelização, por isso, supõe um método próprio, pois, a fé e a vida em Cristo, transcendem as “mudanças” socioculturais de nossos e de todos os tempos. O método embasado na sociologia não condiz com o objeto da evangelização. É o próprio objeto da teologia que determina seu método. A sociologia que investiga situações mutáveis e relativas dos fatos sociais, não é adequada para a teologia. A sociologia usa o “método cientifica” com o qual não podemos abordar o objeto da evangelização.

Quem tem “competência” para auxiliar no estudo de objetos teológicos é a metafísica. A metafísica foi amplamente aproveitada pelo grande teólogo Santo Tomás de Aquino. De tal sorte que, ao mesmo tempo em que ele elaborou a teologia, também fez progredir a visão metafísica de Aristóteles (cf obras de Etienne Gilson).

Em quê a metafísica ajuda a teologia? Em vários aspectos: educa a mente para três hábitos: primeiro, para a visão do transcendente, segundo, para a percepção do ultrasensivel e, terceiro, para evidenciar as causas últimas e mais profundas da realidade. A análise sociológica das causas da injustiça fica no imediato sensível, contábil e numerável. As causas das injustiças são outras e mais profundas.

Precisamos entender que “o lugar para entender e interpretar a fé em Jesus Cristo são os pobres... e disso a Teologia da Libertação não abre mão”, como escreveu o Pe. Libânio em artigo no Jornal Opinião de 26/1/2009, não evidencia a causa mais profunda das injustiças. Essa causa não está nas injustiças contra os pobres, mas está no afastamento de Deus e nisto consiste o pecado, raiz de todo mal. Daí que Jesus não veio primariamente pelo motivo dos pobres, mas pelo motivo dos pecadores (cf Mt. 9,12-13; Lc 15,11s).

A busca e a compreensão correta das causas é tarefa da metafísica, esse dom de Deus concedido à Igreja através de seu instrumento, Santo Tomás de Aquino. Muitos filósofos e também muitos teólogos estão enfarados desse dom de Deus, à semelhança dos israelitas enfarados do maná no deserto.

Entretanto, no dia 16 de junho deste ano de 2010, Bento XVI proferiu uma catequese sobre Santo Tomás de Aquino. Nela recordou que Leão XIII, “grande promotor de estudos tomistas, declarou Santo Tomás padroeiro das escolas e das universidades católicas”. O Papa recordou ainda os dois documentos do Concilio Vaticano II, o que trata da “formação para o sacerdócio”, Optatam totius (nº 16), e o que trata da educação, Gravissimum educationis (nº 10), onde o “pensamento de Tomás foi explicitamente recomendado” para a boa formação dos sacerdotes.

Recordo ainda a Fides et ratio de João Paulo II que do começo ao fim recomenda a metafísica para a teologia, exaltando a harmonia que Tomás de Aquino conseguiu estabelecer entre fé e razão. Por isso, encontramos nessa encíclica: “Santo Tomás foi sempre proposto pela Igreja como mestre de pensamento e modelo quanto ao reto modo de fazer teologia” (Fides et ratio, nº 43). Logo adiante, conclui: “A sua filosofia é verdadeiramente uma filosofia do ser, e não do simples aparecer” (Nº44). As análises do social são ainda orientadas pelo “aparecer”. Não têm condições de nos fornecer o conhecimento das causas mais profundas das injustiças no mundo.

3. Se o método deve corresponder ao objeto, como o caminho ao seu termo de chegada, ele merece especial atenção. O método das ciências exatas, comumente chamado de “científico”, se caracteriza como analítico, fragmentário, enquanto que a filosofia e a teologia requerem um método sintético, unitário. Ao saber de institutos de filosofia e teologia que usam “método científico”, fico preocupado sobre os resultados de tal ensino.

Ilustro o método sintético com o exemplo de Santo Tomás de Aquino. Ao iniciar sua carreira se pôs a comentar, como os demais mestres da época, as Sentenças de Pedro Lombardo. Não tardou, porem, em se dar conta de que as Sentenças eram demasiado analíticas e, por isso, não seriam adequadas para a teologia. Daí partiu para uma visão sintética, unitária, no que resultou a Suma Teológica. Ele próprio comparou o método ao círculo por ser uma figura perfeita. Isto é, primeiro tratou sobre Deus, segundo, sobre Deus que desce e opera a criação e, terceiro, sobre Deus que, após a queda, eleva toda a criação de volta para si. (cf Torrell, J-P. OP, Iniciação a Santo Tomás, pessoa e obra, Loyola,1999).

Interessantes dados sobre o método encontramo-los também na terceira encíclica de Bento XVI, Caritas in veritate. Ao se referir à Populorum Progressio de Paulo VI, faz referências ao método, escrevendo que Paulo VI...

“tinha visto claramente que, entre as causas do subdesenvolvimento, conta-se uma carência de sabedoria, de reflexão, de pensamento capaz de realizar uma síntese orientadora, que requer ‘uma visão clara de todos os aspectos econômicos, sociais, culturais e espirituais’. A excessiva fragmentação do saber, o isolamento das ciências humanas relativamente à metafísica, as dificuldades do diálogo entre as ciências e a teologia, danificam não só o avanço do saber, mas também o desenvolvimento dos povos, porque, quando isso se verifica, fica obstaculizada a visão do bem completo do homem... É indispensável ‘o alargamento do nosso conceito de razão e do uso da mesma’” (Caritas in Veritate, nº 31). Esta última frase Bento XVI tirou-a de sua célebre conferência na universidade de Regensburg, dia 12 de setembro de 2006.

Que dizer então do método ver-julgar-agir? Considero-o, precisamente, analítico, fragmentário, adequado só para a sociologia. Segundo me consta, foi inventado pelo então Padre belga, Cardjin, que depois se tornou Cardeal. Ele era assessor da JOC e começou, em fins da década de quarenta, ou inícios da cinquenta, a usar tal método tributário da sociologia religiosa que despontava, na época, com grande entusiasmo. Ora, a sociologia pertence ao mundo das ciências exatas e usa “método científico”, analítico, estatístico e por isso, inadequado para a filosofia e a teologia. A sociologia, quando se põe a diagnosticar as raízes das doenças, fica só nas aparências, na superfície.

Graças a Deus, talvez mais por intuição e certamente por influência do discurso do Papa, os bispos em Aparecida inverteram o sentido do “ver-julgar-agir”, centrando-o no mistério da Igreja e não nos desequilíbrios sociais, econômicos e políticos. Diz o documento: “Este método implica em contemplar a Deus com os olhos da fé através de sua Palavra revelada...” (DAp, nº 19). Quer dizer que o “ver” não mais deverá ter aquele sentido que se lhe costuma atribuir. Para a pastoral cabe o “ouvir” a Palavra revelada e não o “ver” os fatos sociais.

4. O que nos indica tudo isso? Indica-nos que a realidade sobre a qual devemos buscar o fundamento último, não é a realidade que nos é oferecida pela analise conjuntural das estruturas, mas é aquela oferecida com o auxílio dos paradigmas metafísicos, com sua visão e método. Tais paradigmas elevam nossas mentes ao suprasensível, graças ao quê, elas passam a se mover em três dimensões: na dimensão da formalidade não sensível de toda realidade, na da realidade transcendente, e na ordem das causas últimas de toda a realidade.

Aí está o chão sobre o qual os teólogos devem pousar seus pés se pretendem ser realistas. É um chão ontológico e também prático. O ontológico é constituído pela vida nova, “a verdadeira vida digna deste nome”, como insistiu Bento XVI no discurso de abertura da Conferência de Aparecida. O prático acontece quando em toda ação evangelizadora Deus ocupa o lugar de causa universal e absoluta de todo ser e de todo agir.

Também o mundo deverá ser visto nessa visão. As “mudanças socioculturais... caracterizadas como o fenômeno da globalização”, o “diagnóstico da doença”, merecem sim ser vistas, mas apenas como tema secundário, coadjuvante, e não como tema central e orientador.

Com efeito, a vinda do Cristo deu outro sentido ao “mundo”, precisamente aquele sentido tachado, negativamente, de “espiritualista” pelos que dão a primazia à realidade sociocultural. Bento XVI, no discurso de abertura, rebate os que nos acusam de “uma fuga para o ‘intimismo’... de abandono da realidade urgente dos grandes problemas econômicos, sociais e políticos da América Latina e do mundo... fugindo da ‘realidade’ para um mundo espiritual”.

Usou-se no Concílio a realidade da Encarnação do Verbo para mostrar que a “natureza”, o “mundo” devem ser vistos com outros olhos, diversos daqueles da sociologia. Efetivamente, se o Verbo assumiu uma natureza humana, e, com ela, toda a criação, não foi para deixá-las lá “em baixo”, rebaixando-se ele próprio, mas para elevá-las a um nível superior. A figura verbal “assumir” foi usada desde o início do cristianismo, a fim de nos ajudar a entender o que se passou no homem e no mundo com a descida do Verbo. Desceu para elevar tudo a um sumo: De Deo creante et elevante.

No Catecismo da Igreja Católica, há um resumo dessa fé na elevação de tudo, professada desde sempre. Termina com a citação de Tomás de Aquino, tirada do Ofício de Corpus Christi: “O Filho unigênito de Deus, querendo fazer-nos participantes de sua divindade, assumiu nossa natureza, a fim de que, uma vez feito homem, fizesse dos homens deuses” (CIC nº 460). Eis o eterno desejo e ansiedade do homem! (Gn 3, 5).

Ao assumir nossa natureza, Cristo assumiu também a historia, pois, “entrou como homem perfeito na história do mundo, assumindo-a em si mesmo e em si recapitulando todas as coisas” (Gaudium et Spes, nº 38; Ef 1,10), elevando tudo a um sumo grau.

São Paulo também mostrou ter entendido essa universal assumpção, a do homem e a do universo: “... a criação foi sujeita..., todavia, com a esperança de ser também ela libertada do cativeiro da corrupção, para participar da gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Pois sabemos que toda a criação geme e sofre como que dores de parto até ao presente dia” (Rom 8, 20-22).

Portanto, tanto o homem como a criação toda, só tiveram a ganhar, com a elevação ao sobrenatural. Ainda que não sensível essa elevação é real. Não representa uma fuga, uma alienação. Representa um imenso enriquecimento, dom gratuito do infinito amor misericordioso de Deus Pai.

Hoje, nunca é demais insistir que a visão cristã do “mundo” tem outro sentido. Chamou-se de sentido sobrenatural, outra designação que foi desqualificada, designada negativamente com os slogans “sobrenaturalismo”, “espiritualismo”. A desqualificação do sobrenatural, porém, representa, em nossos dias, um dos problemas centrais da crise do cristianismo.

Foi o que o próprio senador italiano, Marcello Pera, caracterizou, apesar de não ser católico, dizendo: “está em curso uma guerra, a guerra entre o laicismo e o cristianismo”.

Pelo contexto se trata da guerra contra o caráter sobrenatural da Igreja. Pois, o sobrenatural, por si só, rompe com os projetos humanos, por si só contesta as ilusões humanas. Não será essa a causa por que o laicismo desencadeia guerra contra a Igreja? Ele sente seus esquemas contestados, censurados e “por isso o mundo vos odeia” (Jo 15, 19). Os que colocam toda a ilusão num “outro mundo possível”, dificilmente abandonarão sua ilusão para reconhecer o absoluto do “caminho, verdade e vida”.

Onde, talvez, estamos vendo na Igreja a maior das ilusões? Acredito ser justamente a busca do Reino de Deus pelo saneamento do social, das “realidades socioculturais”. Enquanto a Igreja se ocupa de tais “realidades” não há guerra, sua popularidade cresce. É apontada como a primeira, ou segunda instituição com maior aprovação da opinião pública. Mas, quando e onde ela faz aparecer sua verdadeira dimensão sobrenatural, seu mistério, então atrai a guerra. Por que o Papa e seu Magistério são os mais alvejados? Não será porque ali se encontra o baluarte de defesa do mistério da Igreja?

O mito da caverna de Platão poderia nos ilustrar muito bem esse fenômeno que estamos presenciando. Resumindo-o, e até simplificando-o, imaginemos um grupo de homens acorrentados dentro de uma caverna, de sorte a só poder olhar para a parede do fundo. Lá fora, há alguns metros da ampla entrada, está aceso um fogo. Entre o fogo e a entrada passam coisas reais, cujas sombras se projetam na parede do fundo, de sorte que os homens acorrentados só conseguem ver as sombras projetadas. Um deles, porém, consegue desvencilhar-se e sair da caverna e extasiado contemplar a realidade do mundo. Com a nova certeza, ele volta, a fim de convencer os demais de que as sombras das realidades não são o mundo real.

Platão nos conta com uma pergunta o que acontecerá com esse homem. Ele que viu o mundo real, “não seria para os acorrentados motivo de riso e não diriam dele que, tendo saído, voltou com a vista estragada? ... e se ele buscasse libertá-los e conduzi-los para fora e pudessem agarrá-lo... acaso não o matariam?” (cf Reale, G., História da filosofia antiga, II, 193s).

Giovanni Reale comenta, entre outras coisas, que todo aquele que tenta tirar outros de suas ilusões será perseguido de morte. Platão talvez pensasse em Sócrates, nós pensamos em Jesus. Jesus veio nos tirar de muitas ilusões, entre outras, da ilusão de um reino secular de prosperidade e paz. Digo ainda, da ilusão de um reino de “fraternidade” e “solidariedade”.

Foi por isso que Jesus foi condenado. Pensemos também na Igreja e em todos os que se põem na perspectiva da visão sobrenatural do mundo, que ultrapassa o conhecimento sociológico do mesmo. Serão perseguidos.

No discurso inaugural da V Conferência de Aparecida, Bento XVI veio nos falar da realidade, da “vida digna deste nome”: “Só quem reconhece Deus, conhece a realidade...”. E quem conhece Deus é só Cristo e então, se não conhecemos Deus em Cristo, “toda a realidade se converte em um enigma indecifrável...”. Até quando vamos permanecer na ilusão deste “enigma indecifrável”?

Aqui, portanto, a conclusão se impõe... É ilusão do “mundo secularizado”, “laicista”, fixar-se nessa realidade de mundo indecifrável. Ai daqueles que tentam corrigir essa ilusão. E, no entanto, precisamos desvencilhar-nos das amarras do puro sensível para podermos admitir uma visão sobrenatural de Igreja e de mundo.

A dificuldade, hoje, está em admitir que “o Reino de Deus é dom do Pai” (Doc. Santo Domingo, nº 5) e que, por isso, ele ganha a nova dimensão de assumido pelo Verbo. Quando os fariseus perguntaram a Jesus sobre a vinda do Reino de Deus, Jesus respondeu que o Reino de Deus não é aparente (Lc 17, 20). O reino era ele próprio, mas não era visível. Se o fosse os fariseus certamente não lhe teriam feito essa pergunta.

Nosso teólogo, Pe. J. B. Libânio,sj, criticou acerbamente o Documento de Santo Domingo, por afirmar que “o mistério do Reino... é dom do Pai” (SD, nº 5). Criticou-o porque aí “a salvação é vista mais como um dom já feito do que como um seguimento comprometido de Jesus”. Assim o documento “se afasta do tradicional método de nossa pastoral: ver-julgar-agir” (cf Libânio, prefácio de Santo Domingo da ed. Loyola, ps. 56-57). Essa crítica se alastrou depois por muitos ambientes.

Entretanto, graças a Deus que os últimos dois documentos, o de Santo Domingo e o de Aparecida, representam para a Igreja da América Latina uma feliz e verdadeira “correção de rota”, precisamente por voltar a centrar-se na verdadeira perspectiva do Evangelho, professada por Paulo na carta aos Efésios: “Porque é gratuitamente que fostes salvos mediante a fé. Isto não provém de vossos méritos, mas é puro dom de Deus” (Ef 2, 8-9).

Esse texto de São Paulo foi um dos conteúdos da assinatura conjunta, dia 31 de outubro de 1999, entre a Igreja Católica e a Igreja Luterana. Nisso ambas as Igrejas estiveram de acordo. Coisa estranha, no Brasil não se ouviu nenhuma voz que fizesse referência a esse grande acontecimento ecumênico. Ouviu-se algo só na lembrança do décimo aniversário, em 2009. Pensei sempre que o motivo fosse a afirmação consensual conjunta de que a justificação e a salvação são “dons do Pai”.

5. O teólogo há pouco citado coincidentemente é jesuíta. Alguns deles são discípulos de teólogos influentes na Igreja. O que aconteceu nos últimos cinquenta anos? Ouso propor como hipótese de estudo.

Começou-se a dar pouca importância ao fato do pecado pessoal, com sua origem no pecado original, transferindo toda culpa sobre as estruturas sociais. Coincidentemente, Pelágio também começou negando o pecado original. Achou que, não tendo inclinações congênitas para o mal, o homem não precisaria da graça de Deus. E assim deu alimento à indignação de Santo Agostinho e, sobretudo, de São Jerônimo.

Desde o século XVI, surgiu uma grande “urgência”: conter o avanço vertiginoso do protestantismo. Temeu-se que a demasiada confiança na graça de Deus não teria poder suficiente para contrapor-se a tal avanço. Em razão disso, Santo Inácio teria desejado uma maior acentuação da iniciativa humana, pois, as circunstâncias históricas estariam a exigir maior urgência de ações práticas.

Sobre o fim do século XVI, o Provincial dos jesuítas, Pe. Cláudio Aquaviva, pediu para o teólogo jesuíta, Luiz Molina, comentar a primeira parte da Suma Teológica, dando-lhe uma interpretação mais voltada para a ação humana. Molina escreveu uma obra com o título Concordância. Tratava-se de uma nova teoria da relação natureza e graça, ação do homem e ação de Deus. O mesmo provincial declarou depois que essa posição teológica deveria ser a doutrina oficial da Companhia de Jesus (cf. Dictionaire de Theologie Catholique, verbete Molinismo).

Se observarmos, entretanto, a história das doutrinas, em que os discípulos foram ainda mais longe do que os mestres, não admira que, hoje, essa “teologia praxista” tenha conseguido impor-se sempre mais na Igreja e também entre nós os palotinos.

Sintomáticas, acredito eu, estão sendo as duas “Notificações” da Congregação pela doutrina da fé, advertindo, e apontando, ultimamente, imprecisões doutrinais, por motivos semelhantes. Trata-se dos dois teólogos jesuítas, o salvadorenho Pe. Jon Sobrino e o americano Pe. Roger Haigt.

Juntou-se a essa boa intenção de maior praticidade da fé a poderosa influência do marxismo. Sobre o fim da guerra, 1945, houve entre alguns teólogos a descoberta do marxismo e a tentativa de “batizá-lo”, por ser uma doutrina com mais poder de transformação das sociedades injustas. Minha tese de doutorado sobre filosofia social, aprovada em inícios de 1958, aponta para esse fenômeno.

Ao mesmo tempo, desde então foram aparecendo escritos e pregações com o fim de “conscientizar” os pobres a respeito de sua situação injusta de explorados, de dependentes e, por fim, de excluídos. Começavam a surgir atitudes que pareciam não mais darem crédito à eficácia da fé cristã, de sorte que era como se a “práxis”, herdada do marxismo, se sobrepusesse à fé. Entendo que hoje as pastorais deveriam ter em mente tais influências que obscurecem e enfraquecem a fé na presença e ação de Deus como causa primeira e universal sobre todo ser e todo agir.

6. Estou manifestando alguns aspectos que a conferência do Pe. Ângelo me sugere, a modo de um convite para se refletir sobre o assunto. Deve-se reconhecer, entretanto, de que a afirmação do sobrenatural não está faltando nessa conferência e é até fortemente acentuada com a palavra de André Malraux: “... o século XXI será místico ou não existirá”.

Comparando, porém, as duas colocações, esta de Malraux, com as anteriores, com o “diagnóstico da doença”, fundamentado nas “mudanças socioculturais” e nas “profundas transformações, caracterizadas como o fenômeno da globalização”, surge um sério questionamento. Não haverá aí um salto indevido de uma coisa a outra de natureza completamente diversa? A fé, a mística, não será nunca posta em julgamento por esse “diagnóstico”. Ela transcende a todos os momentos históricos da humanidade. Não podemos ligar a fé a este fundamento passageiro e relativo. O problema não reside aí, na relação entre “mudanças socioculturais” e vida mística. O problema está mais acima, na relação entre natureza e graça, fé e prática da fé.

Estou propondo considerarmos, para todo efeito, dois sentidos de “mundo”. O mundo da criação que se afastou de Deus, que não conhece a Deus (Jo 1,10) e o mundo da encarnação do Verbo, “assumido” por Deus. “O mundo os odeia porque eles não são do mundo” (Jo 17, 14). Quando contemplamos uma igreja superlotada de fiéis, ali brilha a alegria de outro mundo, “novo céu, nova terra” (Ap 21, 1). Este mundo devemos ter presente em nossas reflexões.

Os documentos do Concílio Vaticano II contêm afirmações que, talvez por serem consideradas abstratas, não chamam a atenção. Por exemplo, Gaudium et spes dá uma definição de Igreja a ser meditada: A Igreja “é como que o fermento e a alma da sociedade humana a ser renovada em Cristo e transformada na família de Deus. Esta interpenetração da cidade terrestre e celeste não pode ser percebida senão pela fé” (nº 40).

Estou tratando desta cidade celeste, “fermento e alma” (Lc 13,21). Ela é que constitui o corpo vivo e real de Cristo, ainda que só “percebido pela fé” (cf Lumen Gentium, nº 7). Dela devemos nos ocupar, tanto em nossas reflexões, como também em nossas ações evangelizadoras. Não podemos mais estar perdendo tempo e dinheiro atrás da “massa” sociocultural. Julgo que precisamos nos ocupar do fermento e tratar a “massa”, enquanto “interpenetrada” e adequadamente relacionada com o “fermento”.

7. Finalmente, decisivo para isso seria entendermos a relação entre esses dois termos, massa e fermento, natureza e graça, ação humana e ação de Deus, fé e prática da fé.

Não é o caso de tratar aqui, longamente, esse eterno problema da humanidade, sobretudo a partir de Parmênides, caracterizado como a Esfinge a nos propor o mais fundamental enigma filosófico. Trata-se do problema de como vencer o dualismo entre os termos apontados.

Digo que a realidade múltipla, toda ela, se nos apresenta dual, composta de um componente que “exerce” no todo uma função ativa determinante e outro que “exerce” uma função mais passiva, determinada. Por exemplo, as plantas, os animais, os homens, todos são um composto da mesma matéria determinada e diferenciada por outro componente, a vida vegetal, animal e humana.

A esses componentes, todavia, não podemos atribuir-lhes nenhuma autonomia no existir, isto é, não acontecem nunca separados, só por pura imaginação. Existem apenas em função, em mútua relação. Por isso, o ser dual composto, só o entendemos e o definimos em seu “valor” ontológico, em sua natureza, como um todo composto.

Em consequência, todo agir é também fruto do todo composto e só assim podemos entendê-lo adequadamente. No caso da graça em que entra em questão nossa natureza, não é nem a graça que age e nem a natureza, é o todo composto de natureza e graça. Não podemos imaginar a graça e a natureza como seres separados e tentar uni-los, ou pelo artifício imaginativo do “equilíbrio”, ou pelo outro artifício um pouco melhor expresso da “articulação”.

Essas duas tentativas de nos livrarmos do dualismo não são adequadas porque supõem sempre salvar a unidade na diversidade dando foros de realidade aos componentes privados deles.

Temos um exemplo em casa. Na Igreja da América Latina há um louvável empenho em resolver o dualismo entre “discípulo e missionário”. Já na V Conferência de Aparecida, se não me engano, se esteve observando que melhor seria dizer “discípulo missionário”, ou “discípulo-missionário”, no esforço de vencer o dualismo entre ambos os termos. Na verdade a realidade ontológica é uma só composta de discipulado e missionaridade na mesma e idêntica pessoa. O agir desse ser discípulo-missionário esse sim se manifestará externo, em seus frutos.

Vicente Pallotti escreveu uma pequena frase que expressa essa realidade de forma perfeita. Encontramo-la num dos primeiros escritos sobre a natureza da obra, Apostolado Católico, isto é, universal, de cada qual. Escreve ali: “... a vida de Jesus Cristo – sua vida é seu apostolado – deve ser o modelo...” (Cf V.P. Documentos da fundação, trad. Pe. D. Rubin). Reclamei com meu irmão por ter esquecido na tradução o acento no “e” como consta no original italiano.

Portanto, antes de tudo devemos entender que, vida e apostolado, discípulo e missionário, formam uma única realidade dotada de dinamismo para a ação. Esta unidade é a raiz donde brota toda ação missionária. Essa relação, por causa do referido “isolamento relativamente à metafísica”, expresso por Bento XVI, resulta difícil de compreensão.

Os paradigmas metafísicos de “ato e potência”, “matéria e forma”, designam essa síntese de dois componentes de uma única e mesma realidade. Desse todo composto brota toda ação prática.

Entretanto, importa prestarmos atenção para o fato das “funções” distintas no todo de ambos os componentes. Porque, nos últimos tempos há infelizmente uma tendência a nos desorientar na compreensão. Está se dando primazia à “potência”, ao componente mais passivo e determinado e não ao componente determinante. Pretende-se definir o ser a partir da potência. Em nosso caso definir pela análise das conjunturas socioculturais. O caso mais contestável refere-se à primazia da natureza humana de Cristo sobre sua divindade, da natureza sobre a graça, da prática da fé sobre a fé, da missionariedade sobre o discipulado.

A ação vem a ser o fruto do todo, mas o componente ativo, determinante da ação é o que detem a primazia, pois ele dá identidade ao todo e também animação. Por exemplo, nossa matéria é animada pelo componente determinante, pela alma. Este caracteriza nossa matéria, de tal sorte, por exemplo, que um filósofo moderno achou de demonstrou a espiritualidade de nossa alma através da multifuncionalidade de nossas mãos.

Concluo estas breves considerações que a conferência do Pe. Ângelo me sugere. Gostaria de poder me explicar melhor verbalmente. Mas, de momento, peço que interpretem este meu pequeno intento como um desejo de contribuir para esclarecer pontos de vista considerados por mim de extrema importância.






























































Ver-julgar-agir

O método "ver-julgar-agir" ainda continua a causar prejuizos irreparaveis à filosofia e à teologia. Por que? Segundo me consta, foi inventado pelo então Padre belga, Cardjin, que depois se tornou Cardeal. Ele era assessor da JOC e começou, em fins da década de quarenta, ou inícios da cinquenta, a usar tal método tributário da sociologia religiosa que despontava, na época, com grande entusiasmo.
A partir daí teve muito sucesso por responder, segundo entendo, à rejeição da metafísica e a invasão do relativismo cartesiano. Bento XVI, em sua encíclica "Charitas in veritade", referindo-se à Populorum Progressio de Paulo VI comenta que este Papa "tinha visto claramento que, entre as causas do subdesenvolvimento, conta-se uma carência de sabedoria, de reflexão, de pensamento capaz de realizar uma síntese orientadora, que requer 'uma visão clara de todos os aspectos econômicos, sociais, culturais e espirituais’. A excessiva fragmentação do saber, o isolamento das ciências humanas relativamente à metafísica, as dificuldades do diálogo entre as ciências e a teologia, danificam não só o avanço do saber, mas também o desenvolvimento dos povos, porque, quando isso se verifica, fica obstaculizada a visão do bem completo do homem... É indispensável ‘o alargamento do nosso conceito de razão e do uso da mesma’” (Caritas in Veritate, nº 31). Esta última frase Bento XVI tirou-a de sua célebre conferência na universidade de Regensburg, dia 12 de setembro de 2006. 
Que dizer então do método ver-julgar-agir? Considero-o, precisamente, analítico, fragmentário, adequado só para a sociologia. Ora, a sociologia pertence ao mundo das ciências exatas e usa “método científico”, analítico, estatístico e por isso, inadequado para a filosofia e a teologia. A sociologia, quando se põe a diagnosticar as raízes das doenças, fica só nas aparências, na superfície.
Ilustro o método sintético com o exemplo de Santo Tomás de Aquino. Ao iniciar sua carreira se pôs a comentar, como os demais mestres da época, as Sentenças de Pedro Lombardo. Não tardou, porem, em se dar conta de que as Sentenças eram demasiado analíticas e, por isso, não seriam adequadas para a teologia. Daí partiu para uma visão sintética, unitária, no que resultou a Suma Teológica. Ele próprio comparou o método ao círculo por ser uma figura perfeita. Isto é, primeiro tratou sobre Deus, segundo, sobre Deus que desce e opera a criação e, terceiro, sobre Deus que, após a queda, eleva toda a criação de volta para si. (cf Torrell, J-P. OP, Iniciação a Santo Tomás, pessoa e obra, Loyola,1999).
A V Conferencia dos bispos da America Latina e Caribe inverteu o sentido que se dava ao método ver-julgar-agir. Em vez de se entender o "ver" como realidade socio-política, o definiu como o "contemplar a Deus com os olhos da fé através de sua Palavra revelada..." (nº 19).
Isto é suficiente para nos dar conta de que as interpretações do Documento de Aparecida, atribuindo ao "ver" a análise socio-político, não correspondem com o texto do mesmo Documento...   










terça-feira, 2 de outubro de 2012

Vida em abundância


Minha proposta vai na direção de se refletir sobre a demasiada, diria, setorização da pastoral, perdendo de vista o essencial. Além da setorização, também verificam-se ambiguidades de linguagem. Quando, por exemplo, o Evangelho fala em "vida em abundância" (Jo 10,10), entende vida biológica? E se não for vida biológica, que se entende por vida no Evangelho e que relação tem a vida evangelica com a vida biológica? Se lermos o livro dos santos de cada dia, veremos que eles todos, sem muitas juras pela vida biológica, foram exímios cuidadores desta vida, e o foram como decorrencia da outra vida...da vida evangélica.

Carta ao Pe. Wlademir Porreca

Prezado Pe. Wladimir Porreca


Estive lendo suas reflexões a respeito da familia e da pastoral familiar. Sou um padre já com 86 anos, mas sinto-me ainda com bastante responsabilidade sobre a ação pastoral da Igreja. Há tempo venho me perguntando a respeito de fenômenos, como a fuga dos católicos para as seitas evangélicas, o fato de após a 1ª comunhão e sobretudo após o Crisma, as crianças, os jovens, não frequentarem mais a igreja, etc. Pergunto-me: qual a causa? Estou inclinado a crer que o problema está na família, a começar pelo sacramento do matrimônio. Pergunto-me? Por que os pais terceirizam a educação dos filhos em favor da escola e, sobretudo da catequese? Não lhe parece também que a pastoral familiar é uma pastoral de "resgate" das famílias que, tendo iniciado frouxamente sua vida cristã pelo sacramento do matrimônio, não conseguem ser suficiente suporte de vida cristã para os filhos. Somente exortar os pais a que assumam não produz frutos. Perguntei a uma lider de catequistas: que proveito conseguem com as reuniões dos pais dos catequesandos? Nenhum, respondeu-me. Proponho que se reflita sobre entregar aos pais a incumbência que lhes compete de preparar os filhos para os sacramentos de iniciação cristã. Não proponho que dêm catecismo, mas que preparem os filhos, que é outra coisa. A capacitação dos pais começa com a preparação para o matrimônio. No ato da concepção a nova criatura recebe a fisionomia dos pais, a indole psicológica e, por que não? também a fé! Desde a Quadragesimo Anno as autoridades da Igreja defendem o princípio de sibsidiariedade, mas a organização da catequese não respeita esse princípio. Se quisermos institucionalizar minha proposta, então o exame não se fará mais com as crianças, mas sim com os pais: como preparastes as crianças?... Conseguiremos menos número, mas, e se conseguissemos mais perseverança? Termino, pedindo que se estude esse problema. Saudações e bênçãos! Pe. Achylle Alexio Rubin

domingo, 30 de setembro de 2012

Carta aberta à escritora Lya Luft

Carta aberta à escritora Lya Luft


Prezada escritora

Quero felicitá-la pela sua última crônica, publicada na revista Veja, ano 45, nº 39, com data de 26 de setembro de 2012, sob o título Buscando a excelência. São 54 anos que venho lecionando filosofia e desde a primeira aula estive me orientando pela crítica à escola. De lá para cá minha crítica veio crescendo, pois a escola veio piorando sempre mais. É bem verdade o que você diz: “A mediocridade reina, assustadora, implacável e persistente. Autoridades desinformadas, alunos que saem do ensino médio semianalfabetos e assim entram nas universidades, que aos poucos vão se tornando reduto de pobreza intelectual”.

Recordo outro professor que se apercebeu desse fenômeno, Mateus Lippman. Professor de lógica no primeiro ano de faculdade confessa que quando se deu conta que era impossível fazer os alunos entenderem a lógica, abandonou a universidade e fundou o movimento Filosofia para as crianças, mundialmente conhecido. Admiro a constatação e a resolução tomada por este professor, apesar de contestar-lhe o conteúdo de tal filosofia para as crianças.

Sou professor de metafísica e busco sempre entender tudo pelas causas mais profundas. Considero que a causa mais profunda reside na carência da base última e fundamental da educação. Tal base reside na família natural. Os pais são a autoridade indispensável, única, em educação.

Vivemos, hoje, na era da tecnologia e, por isto, nossa cultura crê que todos os problemas humanos se resolvem pela tecnologia. Assim que a felicito, Lya Luft, porque foi uma das poucas vozes que, ao falar de reforma de ensino, não se apelou para os elementos tecnológicos. Com o domínio da tecnologia não se respeita e não se valoriza o que é natural e valoriza-se mais o artificial. Perdido assim o sentido da família natural se tenta construir famílias artificiais. Com isto se tenta alcançar o objetivo da educação desconhecendo a legítima autoridade educativa, que é a família natural.

Esta família também entrou em crise, em nossos dias. Assim, estas próprias crianças são matriculadas na escola mal educadas. E os pais chegam ao absurdo de reclamar dos professores por não educarem bem seus filhos. Acontece que os pais crêm possível terceirizar a educação cívico-humana em favor da escola, e a educação religiosa em favor da catequese.

Falando de alfabetização, por exemplo, entendo que se deveria fazer uma experiência pioneira em que a alfabetização fosse ministrada pelos pais. Com isto as crianças entrariam na escola com outro espírito. Insiste-se tanto para que os pais participem da escola e é de nos perguntar se tais reuniões estejam produzindo os frutos desejados. Com um décimo de tempo que os pais dedicasse à tarefa de alfabetizar os filhos alcançariam resultados muito mais satisfatórios. O mesmo se diga da tarefa de educar na fé.

Sempre me perguntei: por que as crianças, antes de começarem a frequentar a escola querem saber a respeito de tudo e fazem mil e uma perguntas e após ingressarem na escola perdem o interesse pelo saber, não fazem mais perguntas, e somente se mostram interessadas em cumprir tarefas, com fins utilitaristas.

Prezada escritora Lya Luft, convido-a a escrever outras e outras reflexões sobre este assunto. Abraços e bênçãos! Pe. Achylle Rubin

Comentário à entrevista aos teólogos Susin e Hommes

(Entrevista enviado por Adroaldo Lamaison)




Teologia da Libertação após Aparecida volta ao fundamento? Entrevistas com Luiz Carlos Susin e Érico Hammes

Luiz Carlos Susin e Erico Hammes refletem sobre a Teologia da Libertação e sobre a Vª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizado no ano passado em Aparecida, a partir do polêmico e recente artigo de Clodovis Boff.

No ano passado, o teólogo Clodovis Boff escreveu o artigo “Teologia da Libertação e volta ao fundamento”, que foi publicado pela Revista Eclesiástica Brasileira – REB, número 268, de 2007. O texto tem, desde então, suscitado polêmica dentro da Igreja. Segundo Clodovis Boff, faltou à Teologia da Libertação, a “realmente existente, a que tem atrás de si quarenta anos de caminhada e cuja evolução já deixa ver traços exigindo crítica e retificação”, consistência epistemológica. Mais: segundo o teólogo, “por falta de uma epistemologia rigorosa e clara, a Teologia da Libertação labora em ambigüidades; laborando em ambigüidades, cai no erro de princípio. E do erro de princípio só podem provir efeitos funestos”. O sítio do IHU publicou o artigo Pelos pobres contra a estreiteza do método de Leonardo Boff, questionando o artigo de Clodovis Boff.

A IHU On-Line discute o referido artigo, entrevistando Luiz Carlos Susin, por e-mail, e Erico Hammes, por telefone.

Luiz Carlos Susin, frei capuchinho, doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, é professor na PUC-RS e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (ESTEF), em Porto Alegre. Ele é autor de inúmeros livros, entre os quais, citamos o livro, organizado por ele, Teologia para outro mundo possível (São Paulo: Paulinas, 2006).

Érico Hammes, padre, é doutor em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Leciona, atualmente, na PUCRS. Desenvolve, principalmente, os seguintes temas: Cristologia, América Latina e Religião. É autor de, entre outros, Filii in Filio. A divindade de Jesus como evangelho da filiação no seguimento. Um estudo em Jon Sobrino (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995).





Eis as entrevistas.

IHU On-Line - Em que os “questionamentos críticos” de Clodovis Boff à Teologia da Libertação se distanciam e em que se aproximam dos questionamentos feitos pela Congregação para a Doutrina da Fé na “Instrução sobre alguns aspectos da ‘Teologia da Libertação’”, de 6 de agosto de 1984?

Luiz Carlos Susin – Evidentemente, os questionamentos de Clodovis provêm “de dentro” da Teologia da Libertação, de alguém que esteve muito tempo entre os protagonistas. E por isso têm um peso diferente. De certa maneira “mais pesado”, já que os questionamentos de Roma provinham de um horizonte amplo e teórico, numa linguagem de retórica tipicamente doutrinal e curial, enquanto Clodovis faz afirmações diretas, num “de repente” sem rodeios e sem grandes explicações. Isso supõe a familiaridade dele e dos seus leitores, exigindo um debate.

Erico Hammes – O artigo de Clodovis Boff se aproxima na medida em que coloca a Teologia da Libertação em crise e o faz de uma maneira total, abrangente. Na realidade, a Instrução de 1984 aborda fundamentalmente duas questões que são, de um lado, a parte da metodologia e, de outro, a concepção da liberdade humana e, por conseguinte, também a salvação. Mas há aqui a ressalva reiterada de que aquilo que vai ser dito não sirva de desculpa para manter o status quo de opressão das pessoas e nem sirva como justificação para condenar aqueles que sinceramente se ocupam pela busca da libertação dos pobres. Então, quando relemos a Instrução de 1984, vemos que ela é relativamente amena em relação a uma posição como a do Clodovis, que, sob certos aspectos, parece muito mais dura. Embora defenda a opção pelos pobres, o faz a partir de uma perspectiva cristo-cêntrica. Outro aspecto que nesse artigo de Clodovis fica mais acentuado é o tema da metodologia da Teologia da Libertação. A Instrução de 1984 se atinha à crítica ao uso do marxismo, enquanto que no artigo do Clodovis há uma referência, de certo modo, ao ver, julgar, agir, mas não uma referência no sentido de uma construção do ver.



IHU On-Line - A crítica de Clodovis Boff aos fundamentos da Teologia da Libertação aponta para uma nova proposta epistemológica? Há algo de novo para nosso tempo? O documento de Aparecida possibilita que a teologia da libertação retome o seu fundamento?

Luiz Carlos Susin - Ele propõe uma “volta” ao “princípio regente” de toda construção teórica da Teologia. Ele parece não acreditar numa interpretação circular entre os três momentos da teologia (sócio-analítica, hermenêutica, prática), e prefere uma linearidade lógica a partir de um princípio, de uma teologia primeira, passando para teologias segundas etc. E esta linguagem é estranha à Teologia da Libertação. Além disso, ele insiste na fé como lugar da elaboração da teologia primeira, e não valoriza na mesma altura a prática do amor, da misericórdia, que é a fé ainda não intelectual, mas em ato, em prática. Deus é amor, e então é pelo amor que experimentamos e conhecemos Deus. Deus é santo, e o caminho da santidade é o amor. Seremos julgados não pela fé que tivemos, mas pelo amor que praticamos. Não há razão para tanta insistência no único princípio da fé como primeiro princípio e regente de toda a teologia. Categorias consagradas como a do “Reino de Deus”, que é o ponto de vista não narcisista do próprio Deus, que está evangelicamente mais interessado em suas criaturas do que nele próprio, em que a misericórdia vale mais do que muita oração, parece não ter peso suficiente para Clodovis. Provavelmente, ele discordaria de minhas observações, e precisaríamos debater, o que muitos teólogos e teólogas estamos desejando.

Erico Hammes - A impressão que se tem é de que Clodovis procura falar em dois níveis de Teologia. Um nível seria o básico, que deveria ser universal, para todos, e depois poderia haver diferenciações, espécies secundárias de teologia, outras teologias possíveis, mas sem perder essa linha de reflexão tradicional de uma relação direta ao texto e do texto para um pensamento. Depois, num segundo momento, se faria uma espécie de aplicação. Isso é o que se pode imaginar como presente no pensamento de Clodovis e de certo modo estaria coerente com a proposta desde a sua tese de doutorado, publicada no Brasil em 1978, quando ele falava em teologia zero, teologia um e teologia dois. Teologia zero seria a reflexão racional da fé; teologia um seria a teologia tradicional; e teologia dois seriam as chamadas teologias do político, na época. Só que, a meu ver, hoje ele vai mais longe e de fato supõe uma teologia intermediária entre a reflexão racional e a teologia contextualizada. Isso é simplesmente uma concepção ingênua no sentido epistemológico, porque não existe a possibilidade de fazer uma teologia neutra. Teologia neutra é um postulado, porque todos nós quando pensamos, fazemos isso com pressupostos implícitos ou explícitos. E ninguém pode hoje fazer teologia sem essa origem própria em que ela está inserida. Então, essa teologia absoluta não existe como teologia. Eu colocaria muito mais aí o discurso religioso, o pensamento racional, depois a reflexão da fé, o ato de crer, e, em seguida, então, a teologia, mas a teologia como reflexão consciente, com os pressupostos da realidade. Isso é o que, de fato, a teologia da libertação tenta fazer. Refletir a fé com os pressupostos da realidade latino-americana. Não há uma contribuição nova aí. O que Aparecida faz é tentar, de um lado, receber o contexto latino-americano e há um esforço nesse sentido (e esse é o problema em que Clodovis quer ver a recuperação do fundamento) de fazer uma reflexão colocando Jesus Cristo como sendo o referencial absoluto. Ora, o Jesus Cristo de que Aparecida fala precisa estar situado dentro do contexto latino-americano ou então no contexto europeu. Não tem como apresentar Jesus Cristo em si mesmo, como se pudéssemos entrevistá-lo pessoalmente, deixá-lo falar à vontade e só ouvirmos. Isso não existe. Nem no tempo de Jesus não existia. Ele sempre atuou dentro do contexto da Palestina e, se ele se faz presente na América Latina, também se fará presente nesse contexto também. O que Aparecida acaba fazendo é propor Jesus Cristo como fundamento, mas não para dar definições absolutas de Jesus como se Ele não tivesse nada a ver com a realidade. E quando o Papa Bento XVI vincula, por exemplo, a opção pelos pobres a Jesus e ao Evangelho, ele tem razão, mas só se tiver essa sensibilidade. Caso contrário, não. Porque, historicamente, o que acontece é um longo discurso sobre Jesus Cristo, mas sem levar em consideração a sua vinculação com os pobres. A prova definitiva disso é que o tema da opção pelos pobres só aparece na Igreja na segunda metade do século XX. Isso no artigo do Clodovis não aparece. Para ele, ao adorar Jesus automaticamente vai se cuidar dos pobres e isso não é verdade. Só vamos cuidar dos pobres se tivermos o coração sensibilizado por essa realidade e percebermos que Jesus tem o coração voltado para os pobres. Os pobres nos ajudam a encontrar Jesus e, no momento em que percebemos essa relação, mudará nossa concepção cristológica. Falamos aqui de uma espécie de círculo hermenêutico entre os pobres e Jesus Cristo.



IHU On-Line - Quando foi publicada a tese de doutorado de Clodovis Boff, ela foi avalizada por importantes teólogos da libertação como um marco teológico fundamental para a teologia latino-americana. Clodovis mudou? Ou mudou a Teologia da Libertação? Se sim, em que consiste a mudança?

Luiz Carlos Susin - A tese de doutorado de Clodovis continua sendo um marco histórico em nossa teologia, citado em todos os continentes até hoje. Ele mesmo não desdiz o seu estudo, mas pode-se comprovar em um texto autobiográfico de Clodovis que eu mesmo editei, com o título O mar se abriu: trinta anos de teologia na América Latina (São Paulo: Loyola, 2000), o acento cada vez mais intenso no único princípio regente de toda a teologia, a Revelação de Deus recebida na fé. Penso que Clodovis se preocupou cada vez mais com o real problema da instrumentalização da teologia e da sua redução a slogans de militância, como também com a questão da espiritualidade adorante do Mistério não manipulável de Deus. Mas a Teologia da Libertação teve sempre cuidado e produziu sempre muitas reflexões nessa direção. É até irritante ouvir e ler críticas à Teologia da Libertação que, neste ponto e em outros, revelam que pessoas que criticam, na verdade, desconhecem autores e textos, falam de ouvir dizer, adotam slogans por preguiça intelectual ou falta de tempo.

Erico Hammes – É evidente que Clodovis mudou. Por exemplo, há um livro dele daquele período (Comunidade eclesial-comunidade política: ensaios de eclesiologia política. Petrópolis: Vozes, 1978), em que ele se posiciona com clareza contra a doutrina social da Igreja, dizendo que ela não dá conta da realidade e que é preciso atender a densidade do real. Então, do ponto de vista metodológico, naquele momento, ele tem uma posição muito diferente da atual. Ele se tornou um teólogo mais preocupado com um conceito de verdade em si, de princípio. E também por outros contextos, não só por esse artigo, se sabe que Clodovis tem uma resistência muito grande, uma contraposição ao chamado pensamento frágil, o pensiero debole, de Gianni Vattimo, e dos pós-modernos. Por conseguinte, a preocupação dele é com um cristianismo e uma teologia que sejam fortes, duras, retilíneas. A Teologia da Libertação certamente mudou também. Mas mudou no sentido de se abrir mais para a realidade cultural, de gênero, para as realidades interiores e de pensamento. E é evidente que ela tenha que mudar porque a realidade muda e se ela quiser ser fiel à realidade ela tem que mudar também. Mas essas mudanças são diferentes do que acontece em Clodovis. Neste caso, há uma volta ao fundamento dele. O que ele chama de volta ao fundamento da Teologia, na verdade, é uma volta ao fundamento dele.

IHU On-Line – O senhor acha que os teólogos da Teologia da Libertação se sentem representados e se identificam com os argumentos apresentados por Clodovis em seu artigo?

Erico Hammes – Posso falar pelo testemunho que tenho de um, que é Jon Sobrino. Ele se sentiu profundamente magoado por esse artigo. E isso porque o Clodovis faz uma referência explícita à notificação do Vaticano a Jon Sobrino. O problema é que Clodovis entende a verdade como verdade cartesiana. Isto é, a coisa é verdadeira por si mesma, e nós temos a capacidade de pegar essa coisa verdadeira na sua neutralidade. De fato, isso não acontece assim. Outro problema é que, para Clodovis a Teologia é a reflexão das coisas de Deus. Enquanto que na concepção tradicional se deve ter presente que a Teologia é reflexão da fé e não de Deus diretamente. E muito menos se deve confundir o discurso da Teologia com a realidade refletida que é Deus, mas Deus por meio da fé. Então, o que Jon Sobrino diz é que a plenitude da fé é a caridade. E, quando fazemos reflexão de Teologia, devemos refletir a caridade, o amor. E, se pensarmos que a primeira encíclica de Bento XVI tem como tema Deus Caritas Est e a a Teologia tem a preocupação de refletir a Deus, então nada mais justo que dizer que a Teologia é a inteligência do amor (intellectus amoris). Esse aspecto Clodovis não entendeu de forma alguma, por causa da sua obsessão por um determinado conceito de verdade em si, e não um conceito de verdade como a Bíblia o entende, que é caridade, amor. Evidentemente que Leonardo Boff não se sente representado, pois já se manifestou em uma carta sobre o assunto. E posso dizer que, de forma geral, os teólogos da libertação não se sentem representados por essa forma de teologia, sobretudo pelo tom agressivo e distorcido que existe no artigo de Clodovis.

IHU On-Line - Os questionamentos de Clodovis Boff à Teologia da Libertação e as reações que despertam colocam em discussão a afirmação do pobre como “lugar teológico”. Quais as principais dificuldades e possibilidades teológicas dessa afirmação?

Luiz Carlos Susin - Este é o cerne da questão! Afirmar que a fé cristã reconhece a partir dos evangelhos uma relação intrínseca entre Deus e os pobres deste mundo é algo central na Teologia da Libertação. E, afinal, de toda teologia que se pretenda “cristã”. Pobres não são somente miseráveis lascados, embora estes mereçam ainda mais o socorro samaritano. Pobre, na América Latina, é quase todo o povo, “gente humilde em barracão de zinco sem telhado”, como diz uma canção bem brasileira, mas povo humilde que reza na hora da Ave Maria. A Teologia da Libertação associou “Pobres” com “Povo de Deus”, Povo de Jesus. É o “lugar teológico” mais precioso do cristianismo, em que Deus se revela na “loucura e escândalo”, no avesso de uma religiosidade pagã que só pensa Deus como Poderoso, Imortal, Princípio etc. A dificuldade da aceitação do pobre como um “lugar teológico” cristão é a exigência de ruptura do conhecimento religioso e de conversão deste conhecimento praticamente ao avesso: não simplesmente um “Deus grande lá em cima”, mas um “Deus humilde lá embaixo”. É olhando para baixo e indo para baixo que encontramos cristãmente a grandeza real de Deus.

Erico Hammes – Quando se fala do pobre como “lugar teológico”, precisamos lembrar que o conceito de “lugar teológico” é bastante complexo. Mas podemos entendê-lo como uma espécie de ponto de partida de reflexão. Hoje, percebe-se a necessidade de se pensar a partir da realidade pobre. E, como tal, o pobre é um lugar teológico, pois ele faz pensar. Esse é o sentido. O pobre é lugar teológico também pela identificação do Deus judaico e cristão com os pobres. O pobre é um sacramento direto do mistério divino. Ele é lugar teológico enquanto é lugar da presença sacramental de Deus no sentido de crucificado. E aí Jon Sobrino fala sobre os crucificados da história, que é uma expressão que ele toma de Ignacio Ellacuría. A partir dos crucificados da história estamos vendo Deus (ou o filho de Deus) sendo crucificado novamente.

IHU On-Line - Que implicações existem para todo discurso teológico o reconhecimento de que Deus vem a nós pelo caminho da quenose do Verbo que se fez carne frágil e mortal? A pergunta pelo principio teológico não deveria estar implicitamente relacionado aos lugares teológicos que o próprio Deus assumiu?

Luiz Carlos Susin - É claro: esta é a “luta de deuses” – ou de “imagens de Deus” com todas as suas conseqüências - que está no coração cristológico da Teologia da Libertação. E por isso Jon Sobrino, nosso cristólogo maior, não pode ser compreendido por quem não assume este ponto de vista, que é extremamente exigente, não para os pobres, mas para os teólogos e para a Igreja em geral. Bento XVI afirmou, em Aparecida, que a “opção preferencial pelos pobres” é intrínseca à fé cristológica, e os bispos citam o Papa no documento final. Tanto o Papa quanto os Bispos entenderam que a fé em Cristo conduz aos pobres para levar o Evangelho e para socorrê-los. Ora, a Teologia da Libertação, na sua cristologia e na sua eclesiologia, diz algo ainda mais radical e necessário: Cristo – e Deus, conseqüentemente – se deixa encontrar identificado com o pobre! É claro que Cristo está na Eucaristia, na comunidade, inclusive na Criação da qual é cabeça, mas o teste, a prova de fogo, é o lugar mais humilde e mais escandaloso: o pobre. Não adianta querer amaciar o Evangelho. Para justificar a sofisticação na Igreja, é necessário utilizar outros argumentos, que têm seu peso também, mas não podem pesar tanto quanto o pobre. Este é o ponto de vista de Cristo, de Deus.

Erico Hammes – Certamente. O tema da quenose pertence a toda a grande tradição religiosa em última instância e, no nosso caso particular, ao judaísmo e ao cristianismo. De um lado, está o sangue de Abel, o justo, que grita, e isso significa que, no Primeiro Testamento, o Senhor se reconhece no clamor do sangue. Nos campos de concentração nazista, a cena de uma criança crucificada fez com que alguém na fila, na hora do almoço, perguntasse “onde está Deus?” e Eli Wiesel, que é Prêmio Nobel da Paz, responde “aí está Deus”, referindo-se à criança crucificada. Ou seja, a onipotência de Deus, diz Tomás de Aquino, é o poder da misericórdia, da compaixão, do amor. Quando dizemos “creio em Deus pai todo poderoso”, o poder de que estamos falando não é o poder de dominar, de estar acima, de ir para além da realidade, mas é o poder de fazer novas todas as coisas. Esse sentido da quenosis faz com que ali onde menos existe esperança, o poder de Deus está mais forte. Quando me sinto fraco, daí sei que sou forte. Onde existe a fraqueza, aí está o poder de Deus. Esse é o sentido da quenose.

IHU On-Line - Em Jesus de Nazaré, o discurso sobre o Reino, sobre o Deus do Reino e a ação em favor dos pobres são intimamente vinculados, relacionados. Como isto se situa frente à discussão sobre o primum epistemológico levantada por Clodovis Boff?

Luiz Carlos Susin - É justamente aqui que precisamos debater com ele. Para Deus, do ponto de vista de Deus, o “Reino de Deus” é maior do que o próprio Deus: inclui Deus e também a Criação de Deus, com especial cuidado para com as criaturas mais frágeis e mortais. Por isso, Deus é o Pai do Reino, o Filho é o missionário do Reino, o Espírito é o seio do Reino, e a Trindade está voltada para fora de si, na centralidade da “quarta pessoa” da Trindade que são os destinatários e convivas do Reino. A glória de Deus é a sua criatura viva, interpretando Santo Irineu. É uma glória não narcisista, em que Deus não está interessado em ser o centro e o primeiro. É verdade que, para a sua criatura, a glória é ver Deus, mas o não narcisismo de Deus nos faz vê-lo na humildade do pobre: a paradoxal glória de Deus num mundo injusto é que o pobre viva. Assim, quando o pobre se alegra em Deus, ele, o pobre, nos oferece um lugar comovente de experiência de Deus e do Reino, sem separação nem prioridades. O primum lógico de Clodovis, o “princípio regente”, soa de forma escolástica e aristotélica, segue uma lógica que nos esforçamos por abandonar. A circularidade é que dá conta de uma leitura teológica cristã da realidade.

Erico Hammes – O conceito de reinado de Deus só faz sentido pela tradição do próprio conceito de reino do antigo Oriente. A função do rei era cuidar dos órfãos, das viúvas, dos estrangeiros e dos pobres em geral. O resto não precisava de cuidado, pois estava incluído nas tribos ou nos clãs. Quando no judaísmo se aceita essa idéia do reinado de Deus, se diz primeiro que só o senhor é nosso rei, isto é, dos que carecem de cuidado. Quando na discussão da monarquia se aceita a introdução do reinado, foi em vista da fidelidade ao senhor. À medida que a monarquia não cumpre sua função de cuidado, surge o profetismo como crítica. E, quando Jesus começa a anunciar a vinda do reinado de Deus, ele está dizendo “Deus está vindo para cuidar dos pobres”. Os pobres são o clamor de Deus e se quisermos servir a Deus precisamos ser sensíveis a esse clamor. E, a partir desse clamor, pensar na nossa fé. O maior problema do Clodovis é querer estabelecer um primeiro passo, para depois ter uma conseqüência. Não. Ou se encontra o pobre e se aceita o pobre e ele nos faz repensar a Deus, ou não encontramos nem a Deus nem ao pobre. Para a tradição bíblica, as coisas não podem ser colocadas como um antes e um depois. Na história do cristianismo, as duas coisas se deram de forma muito interligada.

IHU On-Line - O enfrentamento desta polêmica sobre o primado epistemológico - Deus ou o pobre - não exigiria retomar o conceito de fé subjacente a esta polêmica?

Luiz Carlos Susin - Há, de fato, diferentes formas de fé subjacentes a diferentes maneiras de abordar esta delicada relação entre Deus e o pobre. Prioridade de Deus sobre o pobre ou do pobre sobre Deus são prioridades falsas porque não conseguem pensar os dois juntos, inclusive identificados, segundo Mateus 25. Ou no mesmo lugar, segundo todo o relato evangélico. Portanto, não se trata de “ou ou”, mas de “e”. Toda prioridade aqui é claudicante e pode ser o princípio de um desvio funesto. É necessário pensar de forma complexa, em círculo, e não em linearidade lógica. Quando Clodovis diz que a Teologia da Libertação colocou o pobre no lugar de Deus, e se dissesse também que colocou Deus no lugar do pobre, ou seja, ambos no mesmo “lugar teológico”, isso seria aceitável. Mas ele entende que o pobre “substituiu” Deus no discurso da Teologia da Libertação, e isso causa um enorme espanto: é pesada acusação que acreditamos não ser justa. Ele diz também que se teria colocado nos ombros do pobre um peso que ele não pode suportar. É o contrário: coloca-se uma unção que o faz recuperar sua dignidade diante dos pesos de sua vida. Quando estou em celebração com o povo pobre numa vila de Porto Alegre e olho aqueles rostos marcados, dizendo convicto que ali somos a família privilegiada de Deus, que não há dignidade maior neste mundo do que isso – e vejo uma reação de santo orgulho meneando afirmativamente a cabeça –, então penso: isto é o evangelho inteiro! O peso teológico difícil de levar é nosso, dos teólogos, dos pastores, que temos que ser rigorosos e coerentes. O peso dos pobres já é o peso da vida dura. Que eles são os preferidos, isso é lógica de mãe, e torna mais leve a dureza das suas vidas. Em suma: uma fé teocêntrica que desconsidere o “lugar teológico” de carne e osso do pobre ou o coloque em um “segundo lugar” arrisca seriamente venerar um ídolo, uma fantasia de onipotência de seu narcisismo projetado em Deus. O pobre é um lugar duro da realidade que não deixa a fé ter ilusões.



Erico Hammes – É claro. Eu tenho dificuldade em falar de um primado epistemológico entre Deus e os pobres. Eu diria que há uma circularidade epistemológica. Crer não consiste biblicamente em dizer “Senhor, Senhor”. Crer significa ouvir a palavra e pô-la em prática. No entanto, a palavra se faz carne, isto é, se faz realidade. E aí voltamos ao tema da quenose.

IHU On-Line - Clodovis Boff assinala que a Teologia da Libertação cedeu demais à modernidade. Como a Teologia da Libertação assimila esta crítica? Quais são as possíveis contribuições da posição radical de Clodovis Boff?

Luiz Carlos Susin - A Teologia da Libertação se inseriu, desde o seu início, na espessura da historicidade: é uma forma radical de teologia da história, e por isso vai se transformando com o andar da história. Hoje há quem acuse o próprio Concílio Vaticano II de ter cedido demasiado ao tempo histórico da modernidade. A leitura marxista da história, a “luta de classes” etc. – em que a Teologia da Libertação encontrou algumas afinidades importantes mas também rejeitou axiomas centrais (como o materialismo histórico e a luta de classes como método) – deram o que pensar à Teologia da Libertação, assim como Kant e outros iluministas deram o que pensar à teologia européia do século XX, o que não quer dizer que se trate de uma teologia kantiana! A Teologia da Libertação na verdade “respondeu” cristãmente às objeções de Marx à fé, como a teologia européia às questões de Kant. Não se pode mais pensar em transformação da realidade latino-americana sem a fé centrada na proximidade de Deus com o povo. Disso até Hugo Chávez sabe. Quanto mais o povo paraguaio, que elegeu um bispo católico para presidente da República.



O mérito maior de Clodovis, em seu artigo, é ter levantado, num “de repente”, uma poeira enorme que permite colocar em debate a teologia legitimamente latino-americana com grande potencial no momento em que ela é bem aproveitada no documento final de Aparecida, mas onde não se ousa dizer seu nome. Talvez nem fosse oportuno e nem necessário dizer seu nome, contrariamente ao que afirmava João Paulo II nos inícios da década de oitenta aos bispos do Brasil – que a Teologia da Libertação é oportuna e necessária. Basta que ela possa cumprir sua missão.



Erico Hammes – Clodovis tem um problema com a pós-modernidade; para ele, ainda estamos na modernidade. O que ele entende por modernidade é o fato de termos cedido às idéias liberais, à crítica ao cristianismo e a uma espécie de laicismo e ele considera que a Teologia da Libertação teria cedido a isso também. Quando conhecemos as diferenças teológicas entre a teologia européia e a latino-americana, é verdade que na Europa, especialmente na Alemanha, na primeira metade do século XX, a teologia protestante teve uma forte influência da modernidade nesse sentido. Ela procurava responder a esse sujeito da modernidade, que era um sujeito ilustrado, que queria responder a todas as coisas com a luz da razão. A América Latina é, de certo modo, moderna, mas também convive com situações que não tem nada a ver com a modernidade. No entanto, a modernidade não é problema da Teologia da Libertação. Essa teologia se preocupou muito mais com a situação de opressão da realidade latino-americana e de pobreza real das pessoas. A acusação de que a Teologia da Libertação teria sucumbido à exegese liberal européia é uma coincidência com o documento de 1984. E isso não confere. O conceito de modernidade que Clodovis usa está muito próximo de uma intriga que Ratzinger tem com o pensamento moderno, que é representado por Habermas, pela Escola de Frankfurt, e aí sim tem muita discussão em jogo. E a idéia de Clodovis poderia ser no sentido de negar a legitimidade da democracia para o pensamento.

COMENTÁRIO –Pe. Achylle

Querido amigo Adroaldo L.

De fato deveria dar mais "pano para a manga" essas entrevistas. Em primeiro lugar te agradeço muito tê-las enviado para mim porque é um assunto que me interessou muito. Estive longo tempo em correspondência com frei Clodovis. Assinei desde outubro de 2007 a Revista Eclesiástica B. para acompanhar essas discussões. As entrevistas de Susin e Hammes falam somente do artigo de out. 2007. Mas em outubro de 2008, frei Clodovis escreve outro artigo mais longo de resposta ao Susin, ao Leonardo, ao Libânio, ao Marcelo Barros, ao José Comblin e outros. Felicitei-o pelo artigo e fiz alguma observação e ele, frei Clodovis, me escreveu dizendo que não iria mais continuar a polêmica porque achava ser inútil. Vou tentar em resumo comentar alguns pontos fundamentais dessas entrevistas aos dois teólogos.

1. Susin e Hammes afirmam que "o principio regente de toda a teologia", o "lugar teológico", o "cerne da questão" é o pobre. É que, afirmam eles, a Kenosis de Jesus consiste em ele ter-se sacrificado, identificado com o pobre. Por isso, "o universal concreto da Igreja de Jesus só podem ser os pequenos, os pobres".

Que dizer desse "principio regente"? Negativo!!! Esse principio, esse lugar teológico da teologia e da Igreja, não é o pobre, por mais que a opção pelo pobre seja importante, É O PECADOR!!! Este é o mais "universal" e mais "regente". Com tal que entendamos o pecado, não como uma simples desobediência, mas como o afastamento de Deus, praticado pela sugestão da "serpente", e seguido pela criação inteira (cf Gen. 3,1s). O afastamento de Deus é que produz o "narcisismo" de que falam Susin e Hammes. Se não houve isso, então sim, não adiante "muita oração", por ser supérflua. A origem do Pelagianismo, com efeito, foi essa mesma: a negação do pecado como afastamento de Deus e então a não necessidade da graça para se justificar e se salvar. E o pelagianismo é o que está mais em voga, hoje em dia.

Ora, Jesus se fez pobre, mas mais "cerne", mais "regente" é "Aquele que não conhecera o pecado, DEUS O FEZ PECADO, por causa de nós, a fim de que, por ele, nos tornemos justiça de Deus" (2Cor.5,21, bíblia de Jerus.). A justiça, a salvação, vem dessa Kenosis, d'Ele ter incorporado o pecador e sofrido todas as consequencias do pecado. "Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras..."(1Cor, 15,3). O teólogo não pode falar fora das Escrituras. Dizem ainda que não é verdade que seguindo Jesus estaremos voltados para os pobres. Susin e Hammes não leram o livro dos santos de cada dia. Veriam aí que todos os santos, seguindo Jesus, foram eximios cuidadores dos pobres e dos doentes... O que vejo nesses dois teólogos, em continuação...

2. Eles separam a fé do amor. Estribam-se na palavra de S. João que seremos julgados pelo amor e não pela fé. Aqui está a controversia secular entre Tomás de Aquino e os agostinianos e franciscanos. S. Tomás nos fornece, entrentanto, um paradigma para entendermos melhor a questão. Isto é, não há conflito entre esses dois "componentes" como não há conflito entre a matéria e o espirito em nós, ou entre a matéria e a vegetabilidade nas plantas. O ser é composto de matéria e forma e, tanto "uma" como a "outra", não tem ser, só tem ser no concreto composto. Assim o ser cristão é composto da matéria da fé com a forma da caridade. Mas, nem a fé e nem a caridade existem à parte. S. Tomás diz que a fé, adesão intelectual, sem a caridade não é virtude, não existe. A virtude é o composto, mas prioridade tem a adesão intelectual, sem a qual a forma naõ acontece, como sem a matéria não acontece um homem, uma planta, etc. A matéria é POSSIBILIDADE para acontecer... De fato também sem a caridade, que é o princípio dinâmico do "organismo" cristão, não acontece o organismo. Se tivesses meu livro "Subsídios para a arché da teologia" te aconselharia estudá-lo.

3. Ainda, "os três momentos da teologia", o "sócio-analítico, o hermenêutico e o prático", somente servem como método para as ciências exatas, e concretamente para a sociologia e não para a teologia e a filosofia. Susin e Hammes supõem que, do contrário, a teologia não se fundaria, não teria "pressupostos da realidade". Acontece que a teologia se funda em outros "pressupostos da realidade", não os "sócio-analíticos". Quais são esses outros pressupostos da realidade? São os FATOS, as REALIDADES que nós nunca poderiamos ter tido contato, se Deus não tivesse tomado a iniciativa de fazer acontecer e de nos dar a conheceer. Deus não teve pressupostos socio-analiticos para nos criar, para se revelar como pessoas cheias de amor que iriam fazer "loucuras" para nos reconduzir à sua casa, depois que nos tinhamos afastado delas. Sim, para realizar "o desígnio de reunir em Cristo todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra" (Ef 1,10)... Os teólogos da libertação, ainda, não levam em conta que o documento de Aparecida inverte o sentido do método "ver-julgar-agir". O "ver" o documento o expressa assim: "Este método implica em comtemplar a Deus com os olhos da fé através de sua Palavra revelada...". Isto é outra coisa que método sócio-analítico. Tenho a tentação de formular um juizo ousado talvez: Esses teólogos são artistas das palavras. Então seria preferível que escrevessem romances e poesias em vez de teologia. Desculpa-me se me excedi um tanto, mas creio que aí está o nó da questão. Abraços e muitas bênçãos! Pe. Achylle