terça-feira, 18 de novembro de 2008

Visão cristã do Social

Pastilha 86
A visão cristã do social

Na “pastilha” anterior escrevi sobre a noção de “realidade” no Documento de Aparecida. Volto ao mesmo assunto por achá-lo de muita importância.
Explicito aqui a me referir à “realidade” social, como se passou a entender abusivamente essa palavra. Por isso a coloquei entre aspas.
Há pouco tempo escrevi também sobre a visão cristã da história. Assim como a história também o social se enquadra na mesma categoria, a categoria do mistério de Cristo. Ele veio para “reunir em Cristo todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra” (Ef 1,10). Aqui, o social, como a história, ganha novo sentido, novo significado.
Não se trata por isso de qualquer balela. Sob o prisma da encarnação do Verbo, história e social, vistos na perspectiva humano-sociológica, se esfumam diante do sentido novo, transcendente, infinito de “todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra”. Arriscamo-nos e ficar girando como mariposas em torno de uma débil luz de vela num quarto escuro, e não percebermos o brilho do sol.
O Documento de Aparecida, desde sua introdução, nos aponta para essa grande luz que transcende o sociológico. Encontramos aí, com muita clareza: ... o que nos define não são as circunstâncias dramáticas da vida, nem os desafios da sociedade e as tarefas que devemos empreender, mas acima de tudo o amor recebido do Pai, graças a Jesus Cristo, pela unção do Espírito Santo. Acrescenta o documento que essa definição é para a Conferência dos Bispos de uma “prioridade fundamental” (nº 14). Antes disso, com efeito, vêm citadas as palavras de Bento XVI, fazendo eco a João Paulo II: não tenham medo de Cristo! Ele não tira nada e dá tudo Quem se dá a ele, recebe cem por um. Sim, abram, abram de par em par as portas a Cristo e encontrarão a verdadeira vida” (nº’5).
Onde está a dificuldade? Está na cultura moderna, formada por filosofias, assumidas por tendências teológicas, traduzidas e vulgarizadas pela mídia. E o que há de mais sério nessas ciências? Elas pretendem explicar tudo por aquilo que na filosofia clássica se tem chamado de “potência”, em oposição ao “ato”. Chama-se de potência o componente de qualquer realidade que é feito ser por outro componente ativo, dinâmico.
Toda realidade múltipla é composta desses dois componentes. Ambos formam a realidade. Nenhum deles é realidade a não ser quando unido ao outro. Um exige o outro. A relação mútua é constitutivo essencial de ambos. Temos exemplos abundantes. Uma planta é composta da potencialidade da madeira e do poder de atualização do componente vegetal. Assim nós também somos um corpo orgânico potencial feito atual pela racionalidade.
Que tem a ver com o nosso caso essa consideração? Acontece que, hoje, a mentalidade, a cultura, privilegia os componentes potenciais. Assim, na teologia se privilegia o humano. Em Jesus Cristo se acentua de tal sorte o humano que o divino passa facilmente à categoria de secundário, ou, como se reconheceu, passa à categoria de “suposto”. Acentua-se o histórico e o social ao nível do humano e sociológico, em detrimento da visão cristã dessas dimensões. Tomam-se esses conceitos despidos do sentido divino que, depois de Cristo, passaram a possuir.
O fato de privilegiar a potência redunda para muitos teólogos e agentes de pastoral, em querer fundamentar tudo partindo “de baixo para cima”. Entretanto, assim como a criação, também a revelação, não aconteceram dessa forma. Elas foram inesperada surpresa, pura gratuidade, fruto de uma escolha amorosa de Deus.
É verdade que, tomada essa amorosa iniciativa, Deus pôs à prova os destinatários, como convém a seres livres. Os primeiros pais foram provados por um livre ato de aceitação e correspondência. Sabemos do resultado descrito no livro do Gênesis. A redenção por Jesus Cristo também foi posta à prova de aceitação e correspondência na pessoa de Maria. Daí que os Santos Padres nos ensinaram que, assim como por um homem e uma mulher nos veio a perdição, do mesmo modo, por um homem, Jesus Cristo e por uma mulher, Maria, nos veio a salvação.
Desde então os cristãos estiveram a braços com a enorme questão: como entender melhor a ação livre de Deus sobre nós e a livre correspondência de nossa parte? Ou, como se relacionam graça e natureza, sobrenatural e natural?
A história parece mostrar que acontece um movimento pendular entre o sobrenaturalismo e o naturalismo. O natural e o sobrenatural são dois escolhos, Cila e Caribde, que formam uma estreita passagem pela qual muitas teologias não passam incólumes. Isso acontece em épocas como a nossa em que se rejeitou a metafísica, única ciência que poderia nos fornecer o paradigma da passagem por entre esses dois escolhos.
Os filósofos sociais discutiram muito sobre o sentido do social e não chegaram a um consenso. Os teólogos, chamados a se moverem ao nível do sobrenatural, onde o natural, o imanente, nada perde e ao contrário é transfigurado, não podem ficar enredados no trânsito da imanência. São solicitados a levantar os olhos às alturas em que Cristo, assumindo a natureza a elevou. Por isso, nos exortam os últimos Papas: não tenham medo de Cristo! Ele não tira nada e dá tudo. Em verdade, assim como assume nossa humanidade, com ela assume também a história humana e o social. Foi para exemplificar que chamei atenção para o caso do império romano. Não consta que os cristãos dos primeiros séculos desenvolveram uma vasta ação social para fazer ruir o império. Ele foi penetrado por infiltração do fermento que é o Reino de Deus (Mt 13,33). Jesus não disse que o Reino é a massa, mas disse que o Reino é o fermento. O fermento transforma a massa compenetrando-a e fazendo-a levedar.

Um comentário:

Frank disse...
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