segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Não só de matéria

Não só de matéria
Achylle Alexio Rubin
achyllerubin@yahoo.com.br

Acabo de ler um livro, cuja tradução italiana leva o título que encabeça esta crônica. Nesse livro o autor, Thomas Crean, professor de filosofia na universidade de Oxford/Inglaterra, analisa e contesta as afirmações superficiais e desfocadas do biólogo Richard Dawkins, em seu livro, aliás, best-seller, A ilusão de Deus. Oxalá essa obra de Crean seja logo traduzida ao português.
Faço essa referência porque escrevi em crônica anterior que a nova encíclica social de Bento XVI, Caritas in veritate, representa um tratado de antropologia. Sabemos que a antropologia se ocupa do estudo do ser humano, de sua natureza. Pois bem, a nova encíclica fundamenta todas as suas considerações sobre valores que ultrapassam de muito os meros valores materiais. Se Deus fosse uma ilusão, como Richard Dawkins gostaria que fosse, então sim a humanidade continuaria vítima da incomensurável ilusão de alcançar preencher o anseio de amor e de felicidade com meros bens materiais, econômicos...
A encíclica de Bento XVI, justamente em seu primeiro parágrafo, começa por nos dizer a evidência atestada até pelos filósofos pagãos, que são as virtudes de ordem espiritual, a caridade e a verdade, “a força propulsora para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira” (nº1).
É interessante que, no andar de toda a encíclica, o Papa nos mostra que esses valores espirituais, pertencentes à verdadeira natureza do homem, são determinantes na solução dos problemas humanos, tanto os de ordem pessoal, quanto os de ordem social, política, econômica e financeira. Demonstra-nos que eles conduzem a uma feliz experiência, a experiência do dom, da gratuidade, que deverá sempre temperar os mecanismos econômicos da sociedade. Insiste que são as virtudes da caridade e da verdade que “colocam o homem perante essa admirável experiência do dom”.
Se tal experiência não for ofuscada por “uma visão meramente produtivista e utilitarista da existência”,ela nos abre o espírito sedento de valores maiores, sedento de ‘ser mais’, para “a dimensão da transcendência”. Abrindo-se para a transcendência o homem se reconhece também dom em seu ser e em seu agir. Ele não é causa de si mesmo. Ele é dom, é gratuidade. Com isso ele se abre em louvor e ação de graças para o doador de todo dom.
Privado de uma tal consciência, “o homem moderno se convence erroneamente, de que é o único autor de si mesmo, da sua vida e da sociedade. Trata-se de uma presunção, resultante do encerramento egoísta em si mesmo que provém... do pecado das origens” (nº 34).
Sobre isso, Bento XVI cita o Catecismo da Igreja Católica nessa fundamental sentença: “Ignorar que o homem tem uma natureza ferida, inclinada para o mal, dá lugar a graves erros no domínio da educação, da política, da ação social e dos costumes” (Catecismo, nº 407).
Grave erro é não reconhecer que “a natureza ferida” é a origem do egoísmo, do sensualismo desenfreado, da ganância que, hoje, todos apontam como a principal causa da grande crise em que se debatem as nações.
Acontece que “a convicção da exigência de autonomia da economia, que não deve aceitar ‘influências’ de caráter moral, impeliu o homem a abusar dos instrumentos econômicos até mesmo de forma destrutiva..., e ainda a espezinhar a liberdade da pessoa e dos corpos sociais” (nº 34). Concluo, portanto, convidando o leitor a ler com atenção a nova encíclica de Bento XVI, Caritas in veritate. Meditemos e tiremos a conclusão que se impõe de que “não só de matéria”, ou, como Jesus contestou ao tentador: “não só de pão vive o homem” (Mt 4,4; Deut 8,3)...

domingo, 10 de maio de 2009

Meditação para o ano catequético

Meditação para o ano catequético

O ano catequético é também ocasião para meditarmos sobre a catequese. Tem-se escrito muito, ocorreram muitos estudos a respeito. Entendo, porém, que se deveria refletir sobre dados que julgo pouco levados em conta.
Começo com uma pergunta que um candidato à vida consagrada me fez, há poucos dias: “Por que se batizam crianças, se elas não teem consciência da fé?”
Respondi: tem-se dito que a criança é batizada na fé dos pais. Considero essa resposta verdadeira, mas deveria ser explicada. Acredito, com efeito, que a criança não só é batizada na fé dos pais, mas também na sua própria fé. Como assim?
A criança biologicamente é um ser autônomo. Esse é um dos argumentos contra o aborto. Entretanto, por respeito à estrutura de seu caráter, estrutura psíquica, ética, moral e espiritual, a criança desde a concepção depende e já vai incorporando em si os elementos dessas áreas, incluída, sobretudo, a fé. Tudo isso a criança já possui incoativamente, recebido dos pais. A Renate Jost Soares, com sua intuição e trabalho tão sério e fecundo, que o diga.
Assim, o inicio desses componentes essenciais para o ser humano, não exige necessariamente o uso da consciência, pois ele acontece antes mesmo. Até o uso pleno da consciência, o filho depende dos pais nas áreas do caráter, do comportamento e da fé. Não só depende, mas também recebe esses elementos dos pais. Aqui a autonomia vai acontecendo em momentos sucessivos.
Os pais são assim ministros naturais e eficazes. Para tanto, receberam do Criador tal ministério, inscrito em sua própria natureza de pais. Trata-se ademais de um ministério indispensável e, mais do que indispensável, insubstituível!
Nenhum outro método, nenhuma outra ação poderá substituir esse ministério dos pais, recebido do Criador, inscrito na própria natureza da paternidade e maternidade. Agir contra a violência, por exemplo, não produz frutos. Seria preciso cuidar da raiz que condiciona a violência. O Texto-base da CF deste ano diz uma frase que deve ganhar mais espaço e relevo. Diz lá: “... a família forma o ambiente privilegiado e insubstituível para desenvolver a cultura da paz” (nº243).
Essa frase nos sugere por associação o principio de subsidiaridade que Pio XI consagrou na encíclica Quadragesimo Anno. Subsidiário é algo “secundário”, que presta auxílio a outro principal. Assim a comunidade maior é apenas subsidiária por respeito à menor, isto é, só deve ser de auxílio naquilo que a menor não tem condições de conseguir. A menor é a primária, a maior, secundária, subsidiaria. Esta não pode tomar o lugar daquela.
Quando levam a criança a ser batizada, os pais são exortados, tanto ao receberem a vela acesa, quanto ao serem abençoados. No primeiro caso o ministro diz: “...esta luz vos é entregue para que a alimenteis” e, no segundo, diz: “Deus... os abençoe, a fim de que...sejam os primeiros a dar aos filhos... o testemunho de sua fé em Jesus Cristo nosso Senhor”.
Que tem a ver isso com a catequese? Não é difícil de relacionar. A catequese não pode de forma alguma substituir os pais na educação da fé. O catequista não tem a competência natural para isso. Nunca fará o que só os pais podem fazer.
Muitos se questionam donde vem a fé de uns em contraposição da falta de fé de outros. A experiência nos diz que os primeiros receberam a fé dos pais. É deles que normalmente recebemos a fé. É o caminho natural, dom de Deus inscrito na natureza.
Não será, a falta de vinculação religiosa à família, a causa da queixa tão comum de que após a primeira eucaristia e, sobretudo, após o sacramento da Crisma, as crianças e adolescentes não voltam mais à Igreja? E não há também a queixa a respeito das dificuldades inatas da pastoral da juventude? Não será porque as crianças e os jovens, aos lhes faltar essa vinculação familiar, se tornam quase impermeáveis aos valores ético-religiosos?
Claro, Deus faz milagres, mas o caminho normal do agir de Deus são as “causas segundas”. Ao criar, ele enriqueceu as criaturas de capacidade de agir. E às criaturas racionais, deu a missão de educar os filhos para os valores ético-morais e religiosos. Os pais são a causa segunda na educação, sendo sempre Deus a causa primeira.
Alega-se que os pais não cumprem com sua missão. Muito bem. Mas então por que não dar mais ênfase à pastoral familiar, em vez de substituir-se a eles? Para que despertem ao cumprimento de sua missão, entretanto, é importante que concretamente sejam estimulados a cumpri-la, com a prática da educação dos filhos na fé. Por que não restituir-lhes então também a prática de seu carisma, confiando-lhes a preparação para os sacramentos de iniciação cristã?
Dir-se-á, que aos pais lhes falta o preparo para a catequese. Mas, e se não se tratasse de “dar catequese” aos filhos? O nome “catequese”, com efeito, possui uma conotação tão especializada e até complicada, depois de tantos estudos e tentativas de solução, que não se pode, é verdade, exigir dos pais tal formação. Mas, dizendo com toda a propriedade, para educar na fé basta uma só coisa: ter fé,! Que “sejam os primeiros a dar aos filhos... o testemunho de sua fé em Jesus Cristo nosso Senhor”. É só isso que se precisa de imediato. A instrução, a catequese, deverá vir depois.
Por ocasião da visita do Papa, maio de 2007, Bento XVI afirmou novamente que evangelizar não significa instruir, mas fazer outros participar da vida nova em Cristo. Pede-se aos pais só isso, evangelizar os filhos.
Por que então não se poderia deixar aos pais a missão de preparar a criança para a eucaristia e conduzi-la, em dia à sua escolha, não à “primeira comunhão”, mas ao inicio da prática eucarística?
Atualmente a catequese não se assemelha por demais à escola? A escola normalmente termina com formatura. De fato, muitos se perguntam se a “primeira comunhão”, como o dia do Crisma, não se parecem mais com uma formatura. Alcançado o “diploma”, as crianças e os jovens contentam-se com ele. Não voltam mais à igreja.
Outra questão. Com a idade de 11, ou 12 anos, ainda lhe interessa a eucaristia a criança de hoje? São Pio X, há um século atrás, pedia que iniciasse aos 07 anos a participação na vida eucarística. Hoje, um século após, e depois de tanta evolução, não se deveria pensar em 05 ou 06 anos?
Muitos temem que o número dos que fazem a primeira comunhão e a crisma irá com isso diminuir de muito. É verdade... Mas, e se a perseverança aumentasse, não seria muito mais importante?
Não só os pais, mas toda a pastoral ganharia em estímulo para buscar a raiz dos problemas e não mais permanecer na aparência dos números. Responderiam assim, em profundidade, aos anseios inconscientes dos cristãos que inconscientemente também ameaçam fugir para outras denominações religiosas.
Como me propus uma meditação para o ano catequético, não julgo necessário me alongar mais. São apenas alguns “pontos”, para serem considerados, com intenção de também ser uma proposta subsidiária.

Pe. Achylle Alexio Rubin
achyllerubin@yahoo.com.br

domingo, 15 de março de 2009

Visão cristã da história

Visão cristã da história

A filosofia da história ocupou-se arduamente em buscar um sentido para o desenrolar através dos tempos dos acontecimentos humanos. Não conseguiu, porém, estabelecer um consenso entre os estudiosos. Não obstante, surpreende que o paradigma “história”, ou “histórico”, tenha alcançado, na cultura atual, tanta importância no pensamento e no agir das pessoas.
Entretanto, a história, com a vinda ao mundo de Jesus, ganha, assim como toda a criação, um sentido novo e original.
Em verdade, o “sinal de contradição” e de “queda e soerguimento para muitos” (Lc 2,34) se manifestou logo no modo novo de julgar e agir daquele “Menino”. Essa novidade, com efeito, fez com que os homens do templo, como os próprios discípulos, tivessem tanta dificuldade para entendê-lo. Os primeiros não o suportaram e terminaram crucificando-o.
Acontece que a alegoria da Caverna de Platão, entre outros significados, mostra que a sociedade não suporta alguém que venha tirá-la de suas ilusões. Platão deverá ter pensado em Sócrates. Muito mais, porém, devemos pensar em Jesus. Ele veio tirar-nos das ilusões da história, mostrando-nos que a história e a criação toda, começavam a ter, a partir dele, outro sentido.
Sobre esse sentido novo da história encontramos valiosos comentários em um autor do século II de nossa era nos deixou escrito numa carta chamada de Carta a Diogneto, publicada pela editora Vozes, em 2003.
É surpreendente como essa carta nos apresenta os cristãos como pessoas “trans-históricas”. Nos capítulos V e VI se lê que os cristãos são “paradoxais”: iguais e diferentes, ao mesmo tempo, dos demais cidadãos históricos. São iguais em tudo o que diz respeito à pátria comum: habitam nas mesmas cidades; empenham-se na política do estado; seguem os mesmos costumes, a mesma língua; vestem-se como os demais e, como os demais, também se alimentam.
Não obstante, “moram na própria pátria, mas como peregrinos”, “ cidadãos, de tudo participam, porém, tudo suportam como estrangeiros”. “Toda terra estranha é pátria para eles e toda pátria, terra estranha” (pg.23); “estão na carne, mas não vivem segundo a carne. Se a vida deles decorre na terra, a cidadania, contudo, está nos céus” (pg.24). Portanto, paradoxais, iguais e diferentes, muito diferentes.
Na introdução da edição, citada acima, Dom Fernando A. Figueiredo comenta que a carta nos fala do “Hoje Divino” da História da Salvação, para nos dizer que “o cristão se torna contemporâneo do Cristo”, ou, melhor, Cristo é sempre nosso contemporâneo (pg.14).
Em outras palavras, isso corresponde a dizer que a História da Salvação perpassa e transcende a história humana. Goza de um princípio de perenidade. Representa o “Hoje Divino”, sempre “contemporânea”, independente dos fatos histórico-sociológicos.
Portanto, a História da Salvação em Jesus Cristo é paradoxal. Ela transcende os critérios da filosofia na busca de sentido para os fatos seqüenciais da história humana. Até, por ser sempre contemporânea, nem é propriamente história, ultrapassa a história.
Em nossos dias, tal afirmação é escandalosa, acostumados que se está a submeter tudo, também como método teológico e pastoral, aos critérios dos acontecimentos históricos circunstanciais.
O novo sentido da história, depois de Cristo, não é levado suficientemente em conta. O próprio critério do “sinal dos tempos”, não é visto sob esse novo sentido. E assim, o domínio da filosofia da história e da sociologia impede que se veja a contemporaneidade da História da Salvação, a contemporaneidade de Jesus Cristo, ontem, hoje e sempre.
Qual o prejuízo para a vida cristã e para a evangelização? A vida cristã se torna apenas uma lembrança histórica, ou uma ciência sujeita à pura hermenêutica e não um acontecer agora, na vida dos cristãos. A evangelização, por sua vez, passa a esbanjar energias em bens materiais e esforços humanos, nas infindas análises e atenções voltadas para os fatos sócio-históricas das conjunturas sociais do momento e perde de vista o que é mais importante, a verdadeira natureza da vida cristã, a contemporaneidade de Cristo e da vida cristã.
Como, então, se entende essa visão paradoxal? A Carta responde no capítulo VIº com uma analogia que nos aproxima da compreensão. Compara o cristão, frente à sociedade profana, como a alma em relação ao corpo. A alma transcende o corpo, nos dois sentidos do transcender, tanto por encontrar-se em todas as partes, animando o corpo todo, quanto por ultrapassar a materialidade do corpo.
Assim são os cristãos. Em primeiro lugar, eles estão em toda parte: “Encontra-se a alma em todos os membros do corpo, e os cristãos dispersam-se por todas as cidades do mundo” (pg.24). Em segundo lugar, como a alma “habita no corpo, mas dele não provém, os cristãos residem no mundo, mas não são do mundo” (pp. 24-25).
Prosseguindo na comparação, o autor da Carta fala do modo de acontecer do ser cristão na sociedade profana e de sua função. O acontecer do ser cristão é, ainda, semelhante ao da alma: Assim como “a carne odeia a alma e a combate... também o mundo odeia os cristãos”... mas, “a alma ama a carne... assim os cristãos amam os que os detestam” (pg.25). A função, entretanto, do ser cristão é também semelhante à da alma: Como “a alma é quem faz a coesão do corpo”, assim também “são eles (os cristãos) que sustêm o cosmo”.
A comparação da alma e da carne nos recorda a parábola do fermento e da massa (Mt 13,33). Jesus disse que o Reino de Deus é o fermento que faz levedar a massa. A massa levedada, enquanto massa, é igual a todas as massas, mas enquanto levedada é outra massa bem diversa. Assim, a sociedade, enquanto sociedade, é igual a todas as demais, mas, enquanto permeada por vida cristã, será bem outra sociedade.
Ademais, o fermento permanece invisível, assim como a ação dos cristãos na sociedade. A Carta a Diogneto, seguindo sua comparação, afirma que, a alma invisível anima um corpo visível, assim como o cristão, no seu “culto a Deus, permanece invisível” ao mundo e, entretanto, o permeia, o anima e o transforma, transcendendo-o, porém, tanto por estar em toda parte, como por estar criando, sem ilusões, “outro mundo possível”, invisível para aqueles a quem lhes falta órgão para ver (Cf Lc 17,20; Mc 4,11-12; Mt 11,25).
E se a queda do Império Romano se explicasse muito melhor, graças a um processo invisível de infiltração, como acontece com os dendrólitos, árvores feitas pedras, por semelhante processo?
O Império não ruiu graças ao empenho dos cristãos em “ações sociais”, buscando a troca das estruturas injustas de então, mas ruiu por um processo de infiltração pelo fermento evangélico. De tal sorte aconteceu que, quando o Império se deu conta, a mãe do Imperador era, nada menos que Santa Helena.
O cristianismo não foi concorrente à sociedade civil. Não precisou pensar em nenhuma pressão física ou moral. A pressão foi espiritual. Melhor, foi o “brilho” da vida cristã, manifestação de seu lado ontológico, que minou a sociedade civil, atraindo os agraciados de sensibilidade espiritual que acorreram pressurosos.
Assim, minha apreciação a respeito dos “padres midiáticos” é a seguinte: seu sucesso não se deve ao poder da comunicação, mas ao testemunho por atitudes e palavras de uma experiência do Espírito prometido por Cristo aos que o pedissem (Lc 11,13).
O Papa, em sua rápida passagem entre nós, definiu a evangelização como um processo de atração, a exemplo do que Jesus disse e fez: Quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim (Jo 12,32).
Concluindo, esse processo transformador do ser cristão representa o lado transcendente da História da Salvação, da vida cristã no mundo. O Evangelho representa novo sentido da vida e da história humanas.
Pe. Achylle Alexio Rubin
achyllerubin@yahoo.com.br

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Correção de rota da Igreja

A Igreja em Correção de Rota
Achylle A. Rubin
Minha última crônica termina falando de “correção da rota” da Igreja na América Latina e no Caribe. Trata-se da Vª Conferência de bispos representantes de nosso subcontinente, realizada em Aparecida do Norte, em maio último. Sendo a Igreja composta de pessoas sujeitas a erros e acertos, resulta natural que faça periodicamente avaliações e correções.
Tal processo iniciou na IVª Conferência realizada em Santo Domingo, em 1992, sob a forte influência de João Paulo II. O documento conclusivo dessa Conferência, abandonou o método de partir das realidades sociais, para partir da profissão de fé: “Bendizemos a Deus que... ‘enviou seu Filho, nascido de mulher’” (Gl 4,4), pois “o mistério do Reino, oculto durante séculos e gerações (Cl 1,26) e presente na vida e nas palavras de Jesus, identificado com sua pessoa, é dom do Pai” (nº 4,5)! Portanto se é dom do Pai, a “prioridade” não é dada às análises sociais, ao método “socioanalítico”, mas ao dom da fé.
Em Aparecida, Bento XVI deu o tom a toda a Conferência, manifestando sua expectativa: “... esperamos encontrar na comunhão em Cristo a vida, a verdadeira vida digna desse nome... Mas isto é mesmo assim? Estamos realmente convencidos de que Cristo é ‘o caminho, a verdade e a vida’?”. O Papa segue afirmando “a prioridade da fé e vida em Cristo” em relação a tudo o que se refere à vida cristã. A prioridade não será mais a realidade social, por mais urgente que apareça. Tal rumo representa uma verdadeira “correção de rota”.
A rota, neste caso, significa o método, definido pelo dicionário Aurélio como “caminho pelo qual se atinge um objetivo”. É caminho, ou procedimento para estudar um objeto.
Ora, cada objeto a ser estudado tem seu método e cada método seu objeto. Por exemplo, não posso estudar uma planta com o método com que estudo uma pedra. É como se, para ir a algum lugar, houvesse um único caminho. Tomando outro caminho, levaria a outro lugar. Um erro de caminho, de rota, exige correção, do contrário não se chega ao lugar desejado.
Pois bem, tomando o caminho, ou método, dos dados sócio-históricos, chamados de “socioanalítico”, não se chega às realidades reveladas por Deus. Chega-se mais próximo, isto sim, do “materialismo histórico”, do qual certos teólogos tiveram e têm muita dificuldade de se desfazerem. Felizmente outros, que acreditavam nesse caminho, voltam a crer e afirmar que se deve “partir da experiência de fé”.
Os bispos reunidos por 15 dias em Aparecida acolheram a orientação do Papa e tomaram pelo método, pelo caminho da “prioridade da fé e da vida em Cristo”. Estamos, pois assistindo a uma feliz correção de rota da Igreja na América Latina e no Caribe.

domingo, 18 de janeiro de 2009

CF 2009 e Documento de Aparecida

Pastilha 90
CF 2009 e Documento de Aparecida

A Campanha da Fraternidade deste ano se propõe “suscitar o debate sobre a segurança pública e contribuir para a promoção da cultura da paz...” (nº 4). O Texto-base, numa primeira parte, o “Ver”, ocupa-se longamente da análise da segurança, dos conflitos e da violência.
A segunda parte, o “Julgar”, contém considerações de fundamental valor. Entre ela, há uma que complementa o lema da CF que diz “A paz é fruto da justiça”, advertindo que a violência, as guerras, pretendem fundamentar a justiça. Entretanto, “no Evangelho, o Sermão da Montanha apresenta a necessidade da superação dos relacionamentos marcados pelo ódio e pela vingança. Apresenta também que a misericórdia de Deus... tem como ponto de partida a misericórdia de todos com os seus irmãos e irmãs (cf Mt 7,1-2). Ainda, “o Evangelho de São Lucas, de um modo especial, mostra as parábolas da misericórdia para que todos aprendam que a verdadeira justiça é a que quer a superação e não a condenação” (nº 245-246; cf João Paulo II, Dives in misericórdia; Rubin A. Eterna é sua Misericórdia, cap. Cinco).
Tais afirmações relativizam toda a primeira parte do Texto-base, elevando as atenções a um outro patamar, a um nível que visa responder, não somente ao “ver” das conjunturas sociais do momento, mas ao “ver” as conjunturas de todos os tempos, de acordo com a contemporaneidade perene de Jesus – ontem, hoje e sempre. Tal contemporaneidade de Jesus, com efeito, nos convida a não nos distrair com considerações circunstanciais e passageiras, de medo de sermos rotulados de conservadores, correndo, porém, o risco já denunciado de “supormos” a Pessoa de Cristo e a vida nova em Cristo.
Entretanto, o Documento de Aparecida não podia ser mais explícito, desde sua “Introdução” a respeito disso. Quase ao acaso encontramos lá afirmações como as seguintes:
1) “O que nos define não são as circunstâncias dramáticas da vida, nem os desafios da sociedade ou as tarefas que devemos empreender, mas acima de tudo o amor recebido do Pai graças a Jesus Cristo pela unção do Espírito Santo. Essa prioridade fundamental é a que tem presidido todos os nossos trabalhos... enquanto elevamos ao Espírito Santo nossa confiante súplica para redescobrir a beleza e alegria de ser cristãos” (nº 14; cf Discurso Inaugural, inciso 3).
2) “Trata-se de confirmar, renovar e revitalizar a novidade do Evangelho..., a partir de um encontro pessoal e comunitário com Jesus Cristo... Isso não depende tanto de grandes programas e estruturas, mas de homens e mulheres novos que encarnem essa tradição e novidade... protagonistas de uma vida nova...” (nº 11).
3) “Nossa maior ameaça ‘é o medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja, no qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas na verdade a fé vai se desgastando e degenerando em mesquinhez’”. A todos nos toca recomeçar a partir de Cristo, reconhecendo que ‘não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande idéia, mas pelo encontro com um acontecimento, uma Pessoa’...” (nº 12).
Desde a introdução, portanto, o DA aponta para a “luz” que vai iluminando todas as suas páginas. Quando, por exemplo, inicia a Primeira Parte, afirmando que “este documento faz uso do método “ver, julgar e agir”, não deixa de ser coerente com as citações acima, ao descrever o sentido novo desse método, da seguinte maneira: a) “Este método implica em contemplar a Deus com os olhos da fé através de sua Palavra revelada..., a fim de que vejamos (“ver”) a realidade que nos circunda à luz de sua providência e; b) a julguemos (a realidade, “julgar”) segundo Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida...” e, finalmente, c) “atuemos (“agir”) a partir da Igreja, Corpo Místico de Cristo e Sacramento universal de salvação...” (nº 19).
O recém beatificado Antônio Rosmini, escreveu no século 19, antes da era do diálogo, um livro corajoso que lhe valeu muitas censuras, com o título As cinco chagas da Igreja. Hoje, na época do diálogo, poderíamos apontar uma só chaga. Identifico-a nos artigos que frei Clodovis Boff publicou nos números de outubro de 2007 e de outubro de 2008 na Revista Eclesiástica Brasileira (REB), insistindo que em termos de teologia e espiritualidade só se pode começar a partir da fé.
Parece, com efeito, estar tão infiltradas, em amplos segmentos de nossa Igreja no Brasil e alhures, convicções e linguagem de que tudo deve começar, tanto a teologia como a espiritualidade, das análises das conjunturas sociais, que não será fácil opor-se a isso. Haja vista na mesma REB as reações de Leonardo Boff, e frei Carlos Susin, entre outros, contra os artigos de frei Clodovis. Crê-se que todo dinamismo evangelizador deve brotar da “indignação” diante das injustiças sociais, marcadamente da pobreza injusta, e não mais da fé em Jesus Cristo, da “beleza e da alegria de ser cristãos”, como se lia outrora a respeito dos primeiros cristãos.

Pe. Achylle Alexio Rubin / achyllerubin@yahoo.com.br