quinta-feira, 22 de maio de 2008

Amor, esquecimento de si

Amor, esquecimento de si

Estou escrevendo sobre o sacramento do matrimônio. Chamei-o de sacramento do amor. Entendi então que devia escrever, antes de mais nada, sobre o amor. Iniciei mostrando o amor como uma realidade paradoxal porque busca união máxima e, ao mesmo tempo, máxima distinção; união de natureza e distinção de pessoas. Na Trindade acontece de forma perfeita tal paradoxo insondável: Uma só natureza, um só Deus, em três pessoas. Comentei também que o amor esponsal é exclusivo e indissolúvel, não só por haver uma lei que postula isso, mas por ser exigência da própria natureza do amor esponsal.
Além dessas características importa salientar outra mais: O amor leva a pessoa ao esquecimento de si. O egoísmo centraliza a pessoa sobre si mesma. O amor faz com que a pessoa esqueça de si, se volte toda para o outro. Na pessoa amada ela se perde, literalmente. Passa do egoísmo, da centralidade do próprio eu, para a centralidade do outro. Talvez seja essa a razão porque o povo diz que o amor é cego. Trata-se certamente de uma avaliação egoísta, pois o amor é cego para seus próprios interesses, por estar voltado todo para o outro. As mães sabem disso. Uma delas, falando a linguagem do egoísmo, me disse: “O coração de mãe é o diacho!”.
Jesus expressa no Evangelho essa radicalidade do amor, quando afirma: ... quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á: mas, quem sacrificar a sua vida por amor de mim, salvá-la-á” (Lc 9,24). Essa é outra expressão do paradoxo do amor. Como se entende que se perder significa salvar-se? Nossa cultura egoísta, feita de imediatismos práticos não consegue entender, por não entende mais o amor.
Duas indicações nos auxiliam na compreensão desse paradóxo. De um lado, a experiência nos mostra que só o amor nos faz felizes, isto é, nos salva. Um outro texto do Evangelho nos aponta onde está a felicidade ao nos dizer: ... quando deres uma ceia, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. Serás feliz porque eles não têm com que te retribuir; mas ser-te-á retribuído na ressurreição dos justos (Lc14,13-14). Serás feliz porque é com tais convidados que o amor acontece. E o amor nos faz felizes. De outro lado, Jesus que se identificou com esses “pequenos” (Cf Mt, 25,40), no dia do julgamento saberá retribuir (Mt 10,42).
Estou escrevendo que o amor nos leva ao esquecimento de nós mesmos, ele nos leva a perder-nos na pessoa amada. No amor somos levados a nos despojar, a nos esvaziar de nós mesmos em favor do outro. Novamente, perdendo-nos nos ganhamos. Quem poderá entender tal procedimento? Somente quem o experimentar. Nossa cultura nos afasta da experiência do amor.
Jesus que havia dito ninguém tem mais amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos (Jo 15,13), efetivamente, esvaziou-se de todas as suas prerrogativas, de todos os seus títulos. Não apelou para nenhum deles, nem sequer o de ser Deus. Entendeu-o muito bem São Paulo: Sendo ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas esvaziou-se de si mesmo, assumindo a condição de escrevo e assemelhando-se aos homens... (Fl 2,6).
No esvaziamento de si, quem ama também dá à pessoa amada aquilo que tem de melhor. Jesus não deu coisas mas deu de si mesmo: Ao dar a vida, revelou-nos o amor. Além disso fez-nos participantes de sua própria natureza (2Pd 1,4) e, deu-nos a si mesmo em alimento e bebida. Portanto, deu de si, do que tinha de melhor. São Vicente Pallotti sentiu isso quando escreveu: Deus me ama tanto que, se pudesse me fazer verdadeiro Deus, me faria verdadeiro Deus.
Em tal clima de amor, se a pessoa amada tiver que retribuir não o fará nunca por temor, mas será igualmente e sempre também por amor, por pura gratuidade. Jesus amou gratuitamente e quis acordar um nós a mesma atitude. Não exigiu nada em troca, não cobrou nada de ninguém, não ameaçou, não julgou ninguém, não condenou, numa palavra, não atemorizou. Só teve palavras de perdão. Se, com efeito, o amor não fosse gratuito criaria devedores e os devedores temem, como diz o provérbio popular: quem não deve não teme, mas quem deve teme.
Em conseqüência de tudo, o amor tem o caráter de certa ingenuidade. O que ama não vê malícia na pessoa amada. Deixa-se facilmente ludibriar. Não busca defender-se da maldade, não se defende porque se entrega.
Há quarenta anos atrás um grande pregador suíço, Pe. Maurice Zundel, fez uma conferência, publicada há poucos anos numa revista francesa com o título: Sauver Dieu de nous mêmes (salvar Deus de nós mesmos). Na verdade, Jesus Cristo nosso Deus, entregou-se nas mãos da maldade humana: o Filho do homem vai ser entregue às mãos dos pecadores (Mc 14,41). Entregou-se por amor aos homens, mas os homens não o salvaram: Os pecadores que ele ama com predileção – Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores (Mt 9,13) – em lugar de salvá-lo, o condenaram à morte.
Entregou-se por vontade do Pai que o enviou a nós. E a vontade do Pai não foi uma vontade sádica. Foi a intenção do Pai, o amor do Pai por nós, a fidelidade à sua própria palavra que havia prometido salvação. E a salvação se faz pelo caminho do amor. Isso tudo aconteceu para que, se alguém tiver que segui-lo, o siga por amor e não por temor. Arrisca-se perder toda a humanidade, com tal que, ao menos alguns, o sigam por amor.
Tem-se recordado sempre o amor de mãe para nos dar uma leve compreensão do amor de Deus para conosco. Recordo sempre de uma triste cena televisiva do trágico episódio da mortandade na prisão de Carandiru de São Paulo. Um repórter mostrava do lado de fora da prisão ua mãe chorando convulsivamente. Perguntou-lhe: Senhora, por que choras assim? Respondeu-lhe ela: Mataram meu filho, mataram meu filho! O repórter iluminou seu rosto. Estava cheio de ferimentos que esse seu filho drogado lhe tinha feito com suas agressões.
O amor não se defende. Se a pessoa amada não o defende ele não se defende. Facilmente se deixa explorar. Sua vitória, porém, consiste em mover o outro ao amor, convertê-lo. Aliás, ninguém transforma ninguém de fora para dentro. Somos seres livres e somente conseguiremos mudar alguém de dentro para fora, movendo-o ao amor e pelo amor. Concluo recordando que o esquecimento de si tem poder. Ele apela e se insere num poder mais alto. Aliás, que seria da mãe como a minha, que gerou quinze filhos, se o amor não tivesse uma transcendência? Que frustração! Entretanto, Jesus, na véspera de sua paixão, quando estava para ser traído e levado à morte de cruz, disse: Agora é glorificado o Filho do homem, e Deus é glorificado nele (Jo 13,31). E a glorificação aconteceu. Ao terceiro dia Deus o exaltou soberanamente e lhe outorgou o nome que está acima de todos os nomes... para que toda língua confesse... que Jesus Cristo é Senhor (Fl 2,9-11; cf Deut 6,4). Há de chegar o dia feliz em que o amor triunfará.

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