segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Documento de Aparecida, comentário 2

Documento de Aparecida, comentário 2

Vimos no primeiro comentário por mim feito que o Documento de Aparecida começa com um princípio metodológico excelente: evidenciar na Igreja um “núcleo unificador”, que nos faça “perceber a unidade de todos os fragmentos dispersos” (36); que “dê unidade a tudo o que existe e nos sucede” (37), a fim de “preencher o vazio produzido em nossa consciência pela falta de um sentido unitário da vida”, pois, finalmente, “nossa maior ameaça é o medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja, no qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas na verdade a fé vai se desgastando e degenerando em mesquinhez” (Ratzinger, J. nº 12). Esse pragmatismo nos distrai com “fragmentos dispersos” da vida cristã.
Tal constatação chama, ao mesmo tempo, por um anelo que vem sendo de longe expresso dentro da Igreja. Na Exortação Apostólica de 1975, Evangelii Nuntiandi, Paulo VI , também ele se pergunta sobre o que “constitui o eixo central da evangelização” e se inquieta sobre “três problemas candentes, que o Sínodo dos Bispos de 1974 teve constantemente diante dos olhos: – O que é que é feito, em nossos dias, daquela energia escondida da Boa Nova, suscetível de impressionar profundamente a consciência dos homens? – Até que ponto e como é que essa força evangélica está em condições de transformar verdadeiramente o homem deste nosso século? – Quais os métodos que hão de ser seguidos para proclamar o Evangelho de molde a que a sua potência possa ser eficaz?” (EN, nº 4).
Esse “núcleo mais profundo” (49), esse “eixo central” foi identificado no Documento de Aparecida como “o mistério de Deus” (35), ou o “que os cristãos chamam de sentido religioso” (nº37).
Temos aí o método e objeto do Documento. Com efeito, método e objeto se correspondem. O método é determinado pelo objeto. Se, por exemplo, temos de definir a pessoa, não podemos usar qualquer método. Não podemos usar somente o metro, ou a balança. Impõe-se outro método. Método, originalmente, quer dizer “caminho para”. Ora, se, por exemplo, o objeto é de chegarmos a determinada cidade, não podemos tomar por qualquer caminho... A posição geográfica da cidade aponta para o caminho. Assim, a natureza, as condições do objeto determinam o método.
O Documento de Aparecida, apontando como objeto “a fé e a vida em Cristo”, nos diz com acerto qual o “caminho” que não podemos tomar e qual aquele que importa tomar, para defini-llas: “O que nos define não são as circunstâncias dramáticas da vida, nem os desafios da sociedade ou as tarefas que devemos empreender, mas acima de tudo o amor recebido do Pai graças a Jesus Cristo pela unção do Espírito Santo” (14). Portanto, eis o título de um artigo de frei Clodovis Boff: “Re-partir da realidade, ou da experiência de fé?” (REB, jan. 2007).
Em vista disso, ao dedicar a primeira parte “à vida de nossos povos, hoje”, o Documento propõe como método a “contemplação de Deus” que nos faz “ver” a realidade “à luz de sua providência”, nos leva a “julgar’ segundo Jesus Cristo” e ainda nos orienta a “agir” “a partir da Igreja” (19).
E o que se revela ainda mais importante, a “meditação do mistério de Deus”, nos cria sensibilidade para percebermos as verdadeiras proporções existentes entre as “dimensões” desse mistério e as “dimensões” da história humana e das realidades urgentes da vida e da sociedade. Sem a comparação entre tais dimensões não teremos como medir nosso ver, nosso julgar e nosso agir.
A história testemunha que a “contemplação de Deus” favorece tal compreensão da iniciativa de Deus de se revelar a nós e de nos enviar seu próprio Filho que, diante dela, a importância transcendente atribuída ao “ver” os “desafios da sociedade”, simplesmente se esfuma. Que são os males de hoje frente ao desproporcional fato do “Deus conosco? Frente a tal desproporção, tais males não são maiores do que os de todos os tempos, desde Adão e Eva. Por que então dar-lhes tanta importância e perdermos tanto tempo com eles, a ponto de vivermos enrolados em pesquisas e estatísticas?
Essa reclamação não é minha. É a mesma do grande Santo Agostinho, proferida num de seus sermões: “não há, irmãos, por que murmurar... Que tormento novo sofre hoje o gênero humano que os antepassados já não tenham sofrido?... No entanto, encontras homens a murmurar contra seu tempo como se o tempo de nossos pais tivesse sido bom... Por que então pensas que os tempos antigos foram melhores que os teus? Desde aquele Adão até o Adão de hoje, trabalho e suor, espinhos e cardos... Que tempos aqueles! Só de ouvir, só de ler, não nos horrorizamos todos?...” (Liturgia das Horas, Vol. IV, p. 113).
A excessiva importância da análise social, onde se atribui a origem dos males da época, nos faz certamente correr gravíssimos riscos. O primeiro de todos parece consistir em que tais análises se fazem com método cartesiano, somando “fragmentos dispersos que resultam da informação que reunimos”, tanto da “informação econômica”, como da “informação política ou cientifica... No entanto, nenhum desses critérios parciais consegue propor-nos um significado coerente para tudo o que existe. Quando as pessoas percebem essa fragmentação e limitação, costumam sentir-se frustradas, ansiosas, angustiadas” (nº36).
Um segundo e maior risco dessas informações que, “transmitidas pelos meios, só nos distraem” (nº38), consiste, precisamente, em “supor” Jesus Cristo em nossa vida e em nossa ação missionária. Encontrei dois destacados testemunhos desse fato. O primeiro foi o do próprio fundador da Teologia da Libertação, Gustavo Gutiérrez, que,em 1996, numa conferência diante do então Cardeal Ratzinger, afirmou que “nos primeiros momentos do trabalho teológico da América Latina, demos como suposta a inspiração da fé...”. O segundo testemunho, encontra-se numa carta que representantes dos novos carismas e novas comunidades, reunidos por iniciativa da Secretaria dos Leigos do Vaticano e do CELAM, escreveram ao Papa. Nessa carta reconhecem que a fé na América Latina está minguando, de vez que Jesus Cristo fica sempre mais “suposto”.
A ênfase com que Bento XVI falou da “prioridade da fé e da vida em Cristo”, pano de fundo de todo o Documento, representa um terceiro testemunho de que não se pode mais seguir supondo Jesus Cristo na vida cristão e na evangelização. Se ele é a causa primeira, absolutamente principal, “o primeiro e maior evangelizador enviado por Deus” (nº103), então não o podemos supor, é preciso levá-lo em conta e dar-lhe a primazia que lhe corresponde em todo trabalho de evangelização. Qual será essa primazia? Brevemente espero falar desse assunto.

2 comentários:

Unknown disse...

Ao longo do tempo da história da Igreja observamos as várias tentativas dela em viver fundamentalmente a realidade do tempo em que se insere. Mas ao meu ver o documento de Aparecida, para nós da Igreja da América Latina, foi um avanço. E artigos como esse, de excelente comentários, criterioso e inteligente, será, concerteza ferramenta para o magisterio (bisbos , bresbiteros, diáconos), agentes de pastorais e de leigos comprometidos com o anúncio do evangélho. Aapresentar o Jesus motivo de nossa fé.

Pe. Achylle disse...

Amigo Edson
Revisando minhas correspondências encontro a tua postagem, me dizendo palavras de muito estímulo. Espero que abras esta para certificar-se que fiquei contente com tuas palavras. Que Deus te pague e abraços e muitas bênçãos para 2009. Pe. Achylle