segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Em torno da Vª Conferência de Aparecida

De todo lado se fazem comentários em torno da Vª Conferência de Aparecida. Proponho-me comentar algumas interpretações feitas sobre o Documento final da mesma Conferência.
Há várias interpretações de teólogos produzidas antes mesmo da publicação oficial, que, no meu entender, têm ares de quem está com pressa em adiantar opiniões. Considero de muita utilidade entabular um diálogo sobre o assunto, deixando de engolir simplesmente o que se publica. Por que temos nós de continuar sendo meros consumidores das opiniões dos outros? Confesso que esta foi uma de minhas maiores preocupações a respeito de nossa formação.
Limito-me a comentar as duas entrevistas sobre o referido Documento final de Aparecida, a de frei Clodovis Boff e a do Pe. João Batista Libânio. Em primeiro lugar, vou selecionar duas perguntas do entrevistador. Uma, sobre “as luzes” que o Documento projeta para a Igreja em geral, para a teologia e para a evangelização. A outra, sobre a posição teórica e prática do Documento a respeito da opção preferencial pelos pobres. Quanto à primeira pergunta considero que ambos os teólogos souberam com muita propriedade acentuar o núcleo central de todo o Documento, que vem projetar luzes sobre a evangelização.
Frei Clodovis, nos diz que “o fio vermelho que permeia todo o documento” seria a “fé viva em Cristo a partir de uma experiência de encontro”, ou, “a fé em Cristo no começo, como fundamento de tudo; a evangelização como primeiro desdobramento espontâneo dela; e, enfim, a missão social como seu necessário desdobramento ulterior”. Seria “a própria boa-nova do amor de Deus a ser experimentado, anunciado e projetado na vida”.
O mesmo núcleo é visto por Libânio, para quem o documento se propõe dois eixos: a) “afirmar a relevância da experiência cristã fundamental e fundante: o encontro pessoal com Cristo no interior da comunidade da Igreja”; ... b) “a alegria de ter-se encontrado com o Senhor”, que faz “brotar os desejos de segui-lo e de anunciar-lhe o Evangelho...” ; ... c) “articulando esses dois eixos... pensa-se, então, deslanchar ampla mobilização para uma grande Missão Continental”.
A outra pergunta do entrevistador diz respeito à opção preferencial pelos pobres. O entrevistador pergunta aos dois teólogos se o documento da Vª Conferência “confirma” essa opção e “como a põem em prática”. Ambos os teólogos respondem afirmativamente. Há uma confirmação e uma prática.
Contudo, parece divergirem quanto à sua concretização prática. Frei Clodovis afirma que “se trata de uma opção verdadeiramente evangélica, no sentido de vir banhada e mesmo encharcada da fé em Cristo... tanto em sua origem (ela nasce do encontro com o Filho de Deus, ‘que de rico se fez pobre’), quanto em seu exercício (ela vibra com os sentimentos do coração do Bom Pastor). Quanto às implicações concretas... os bispos apelam para a ‘imaginação da caridade’, a que se referiu João Paulo II”.
Pe. Libânio começa por fazer ressalvas ao Documento, pois, diz ele, “o conjunto dos bispos... não superou o trauma da libertação..., pesa estranho silencio sobre a Teologia da Libertação”. Por isso, observa criticando, que o Documento “imagina que o agir consoante com a opção pelos pobres flua da ‘fé cristológica’ e daí se faça criativo”. Pois, “as indicações (do mesmo) permanecem na proximidade afetiva e existencial com o pobre, o que já é algo, sem perguntar-se, porém, pelos movimentos sociais... que objetivariam tal opção”.
Com isso, Libânio contradiz as palavras do Papa, por ele próprio citadas: “A opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza”. A “fé cristológica” permaneceria, assim, só “na proximidade afetiva e existencial com o pobre”, ou só “vibraria com os sentimentos do coração do Bom Pastor”, na expressão de frei Clodovis, e não promoveria ação prática alguma, que só viria mediante os “movimentos sociais que objetivariam tal opção”. Para Libânio a prática social não fluiria da fé e vida em Cristo. Seria, como afirmou Dom Damasceno, “paralela” à vida em Cristo. Dualismo, portanto...
Que dizer dessas duas opiniões? Parece evidente que frei Clodovis está mais próximo de fugir ao dualismo “fé x ação social”, do que Libânio. Este acha que a opção pelos pobres não “flui” da “fé cristológica”, enquanto que Clodovis afirma que a opção pelos pobres deve ser evangélica, isto é, deve “vir banhada e mesmo encharcada da fé em Cristo”, com identidade cristã.
Frei Clodovis, como consta de uma correspondência com ele, é um teólogo que sinceramente vive inquieto por encontrar respostas aos dualismos e, com essa inquietação, ele chega mais próximo da visão evangélica. Haja vista o artigo que ele publicou na Revista Eclesiástica Brasileira de janeiro/fevereiro deste ano, com o título bem sugestivo, Re-partir da realidade ou da experiência de fé? Com isso ele antecipou a concepção central, inciso 3, do discurso do Papa, na abertura da Vª Conferência de Aparecida.
Nesse lugar o Papa fala da “prioridade da fé em Cristo e da vida em Cristo”. Em seguida responde à objeção: não seria isso “intimismo”? Não seria fugir da urgência das “realidades” sócio-politico-econômicas “para o mundo espiritual”?
Bento XVI responde com outra pergunta: “que é a realidade? Que é o real?”...Aqui está, afirma ele, “o grande erro, erro destrutivo”: limitar-se às realidades sócio-politico-econômicas. Pois, “se não conhecemos a Deus em Cristo e com Cristo, toda a realidade se converte em um enigma indecifrável”. Pergunta-se, por que?
Por duas razões. Primeiro, a realidade só se entende em relação com o Criador, de quem ela depende. Segundo, ela só se entende em relação à Revelação. Aqui vale o que escreveu São Paulo: “A criação aguarda ansiosa a libertação dos filhos de Deus...pois sabemos que toda a criação geme e sofre como que dores de parto até o presente dia” (Rom 8, 20,22). Só nessa perspectiva, depois de Cristo, se pode entender a realidade toda.
Portanto, Codovis está mais próximo de vencer o dualismo, dizendo que a ação social deve “fluir” da fé e da vida em Cristo, enquanto que Libânio põe a fé e a vida em Cristo só como “proximidade afetivo e vivencial com o pobre”, sem capacidade de se fazer “criativa”, isto é, ação prática.
Este é um primeiro comentário que senti de deixar escrito, ainda que encontre poucos interlocutores. Desejaria muito que os houvesse. Sem interlocutores o estímulo fica fraco.

Nenhum comentário: