sexta-feira, 23 de novembro de 2007

O Documento de Aparecida, comentário 1

Documento de Aparecida, comentário 1

Representantes do episcopado da América Latina e do Caribe, reunidos em Aparecida, na segunda metade do mês de maio deste ano de 2007, elaboraram um documento final que pede para ser estudado e entendido. É evidente que o provérbio antigo continua valendo: quidquid recipitur per modum recipientis recipitur (tudo o que se recebe, recebe-se na medida do recipiente). Assim, todo leitor entenderá o texto de acordo com o instrumental cognitivo que tiver. Lendo os comentários de diversos teólogos, verifica-se isso mesmo com toda a exatidão.
Em primeiro lugar, desde o inicio, o Documento começa fazendo fé ao método “ver, julgar e agir”. Entretanto, a compreensão que ali se encontra não é bem “ver”, “julgar” e “agir”, como muitos deram a entender, pois o define diversamente, isto é, a partir, não da “realidade”, mas da contemplação de Deus com os olhos da fé através de sua Palavra revelada e o contato vivificador dos Sacramentos...”. O “ver” então significa a “contemplação da Palavra” para que “vejamos a realidade que nos circunda à luz de sua providência”. O “julgar” por sua vez exige que “julguemos segundo Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida...”. Finalmente, o “agir” significa “atuar a partir da Igreja...” (nº 19). O teólogo de Florianópolis, Agenor Brighenti critica essas “proposições”, chamando-as de “esquisitas” (cf Convergência, julho-agosto 2007, p.348).
Entretanto, já no capítulo primeiro da primeira parte, encontro a explicação do que significa partir do ato de “contemplar a Deus”, e não do ato de “ver a realidade”. Aqui o Documento cita o Discurso Inaugural do Papa: “Se não conhecemos a Deus em Cristo e com Cristo, toda a realidade se torna um enigma indecifrável; não há caminho e, não havendo caminho, não há vida nem verdade” (nº 22). A realidade, portanto, só se entende a partir da “contemplação de Deus”.
Em parágrafo anterior, Bento XVI havia dito que era preciso assumir “a “prioridade da fé e da vida em Cristo”. Sobre isso faz a pergunta: “poderia acaso ser uma fuga ao ‘intimismo’... um abandono da realidade urgente” sócio-politico-econômica?
Em razão desse temor, muitos, até mesmo teólogos, pretendem partir, não da contemplação de Deus, mas da realidade sócio-política, e terminam esgotando-se num emaranhado de análises e estatísticas sociais, com o que Cristo fica suposto, como foi reconhecido por muitos, até mesmo por Gustavo Gutiérrez, o fundador da Teologia da Libertação.
Essa lição do Papa, porém, foi certamente o “fio vermelho” que perpassa todo o Documento de Aparecida, como disse com muita propriedade frei Clodovis Boff.
Em consonância com esse “fio vermelho”, o Documento parte com uma solene “ação de graças” porque “Deus Pai nos abençoou com toda sorte de bênçãos na pessoa de Cristo” (cf. Ef 1,3). Pois, “o Deus da Aliança, rico em misericórdia, nos amou primeiro...” (nº 23). Novamente, prioritário é o amor de Deus, e não a “realidade”.
Ainda sobre a “realidade” o Documento fala da atitude de humildade, pois “a realidade é maior e mais complexa que as simplificações com que costumávamos vê-la em passado ainda não muito distante e que, em muitos casos, introduziram conflitos na sociedade, deixando muitas feridas que ainda não chegaram a cicatrizar” (nº 36).
As simplificações, segundo entendo, estavam na conta do método cujo ponto de partida é o “ver”. Pois, por ele, “é freqüente que alguns queiram olhar a realidade unilateralmente a partir da informação econômica,... ou da informação política ou científica...” (nº 36).
Para enfrentar essa complexidade e esse reducionismo, introduziu-se no Documento um paradigma de imenso valor com características metafísicas. Dez ou doze números, a partir do número 33, apresentam esse paradigma, contrapondo-o ao fenômeno da globalização.
Assim como a globalização quer ser uma visão e ação unitária e global em todos os níveis da existência humana, da mesma forma é preciso “perceber a unidade de todos os fragmentos dispersos que resultam da informação que reunimos” (nº 36).
Onde encontraremos esse princípio, esse paradigma de unidade de todos esses “fragmentos dispersos” do existir humano? Ele se encontra no “mistério de Deus”, pois, “sem uma clara percepção do mistério de Deus, tornou-se opaco o desígnio amoroso e paternal de uma vida digna para todos os seres humanos” (nº35).
Com efeito, “muitos estudiosos... sustentam que a realidade traz uma crise de sentido”. Não se trata, porém, dos “múltiplos sentidos parciais que cada um pode encontrar nas ações cotidianas que realiza, mas do sentido que dá unidade a tudo o que existe, e nos sucede na experiência, e que os cristãos chamam de sentido religioso... Nossa comum condição de filhos de Deus e de nossa comum dignidade perante seus olhos, não obstante as diferenças sociais, étnicas ou de qualquer outro tipo”, encontra ali no “mistério de Deus”, sua unidade e compreensão (nº 37).
Com efeito, a falta de “um sentido unitário da vida produz um vazio em nossa consciência” (nº38). Por isso, “não basta supor que a mera diversidade de pontos de vista, de opções e, finalmente, de informações... resolverá a ausência de um significado unitário para tudo o que existe” (nº42).
Finalmente, é de notar a convicção com que os bispos reunidos falam do papel unitário da devoção mariana. Diz o Documento que “o ânimo mariano de nossa religiosidade popular tem sido, sob distintos nomes, capaz de fundir as diversas histórias latino-americanas em uma história compartilhada: aquela que conduz a Cristo, Senhor da vida, em quem se realiza a mais alta dignidade de nossa vocação humana” (nº43).
Disse acima que esses números citados representam a metafísica do Documento de Aparecida e valem por todo o documento. Se tivéssemos sido educados, desde crianças, desde o primeiro ano de escola, a entender conteúdos e não a cumprir tarefas, como um bom método deve buscar, obteríamos muito melhores resultados. Mas o próprio documento poderia ser mais coerente com essa metafísica inicial.
Poderíamos ver em exemplos a importância de aprendermos a ver tudo na unidade, a fim de melhor se entender. Começo observando que um aglomerado de fragmentos não nos dá nenhuma compreensão. Por exemplo, um monte de material de construção não nos fornece nenhuma compreensão do que seja uma casa. Igualmente, as múltiplas partes de nosso corpo não nos dão de compreender o que somos. Só o componente de nossa alma dá identidade ao nosso corpo e possibilidade de se entender melhor todo o nosso ser.
Somente o exercício de se entender tudo em sua natural unidade, desde o início da aprendizagem, conseguirá botar ordem em nossa mente. E uma mente desordenada não tem serventia. Seria como um terreno onde a boa semente da compreensão não consegue germinar e crescer, mesmo, e sobretudo, na teologia e na espiritualidade.
Poderíamos ainda valer-nos de outros exemplos mais materiais. Que problemas teria aquele que, tendo centenares de textos em seu computador, não os ordenasse em pastas diversas? O mesmo se diga de uma biblioteca. Se não temos um elemento ordenador dos livros, seja pelo tamanho, ou pelo conteúdo, a biblioteca não seria funcional.
A Fides et ratio de João Paulo II insiste neste particular, afirmando, por exemplo, que “a filosofia, que tem a grande responsabilidade de formar o pensamento e a cultura..., deve recuperar vigorosamente a sua vocação originária” (nº 6). Bem mais adiante, o mesmo Papa explicita: “... o trabalho teológico pressupõe e exige... uma razão conceitual e argumentativamente educada e formada” (nº 77). Entendo que encontrar na evangelização o componente unificador, o “fio vermelho” de todos os fragmentos de vida cristão é o elemento decisivo para descobrirmos e valorizarmos o que de mais central e significativo se vê no Documento de Aparecida.

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